segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Sempre alerta

Chovia na cidade
Quando a ponte caiu
A verdade é que nunca te perdoei
Nem sei quando isso vai acontecer
A foto da violência é perene
Da minha memória nunca vai sair

Não é que quis ir embora pra me encontrar
Me fui para que não doesse mais
O amor é condicional
Tuas expectativas são a lei
E teus olhos comprimem
Causam medo, dor

PÂ-NI-CO
Qualquer movimento brusco
Qualquer tom mais áspero
Palavras-sentença
PÂ-NI-CO
Não precisa ser a mão levantada
Basta a reprovação
Símbolo maior da minha negação
 
Hoje me sinto perdida na bagunça que é viver
Os caminhos são tantos e não sei onde há felicidade
Experiências que podia ter vivido antes
Não existia porto seguro pra voltar
Disso, infelizmente, nunca vou conseguir esquecer

Não levanta a voz pra mim
Se não, não consigo te escutar
Eu ainda não consigo confiar
Como poderia confidenciar?

Ainda é tão difícil me sentir una
Sendo sola
Solitude me observa
E me espera
 
Espero que um dia possa sarar
E que tua dureza se amacie
Pra que a gente possa se abraçar

Parada obrigatória

Não consegui dizer adeus
Um furacão correu à nossa mesa
Quis apagar as memórias
E arrancar do peito um pedaço

Entendo a dor que ventos fortes carregam
Calma, tudo se transforma
Talvez um dia tu possa entender
Que também disso eu queria me proteger
 
Eu sei que não merecia isto
Nem a nossa história
Foi verdadeiro e permanece
Cada passo do caminho
 
Deliciosa trajetória
Surpresas e carinho
Distâncias, outras rotas
Calmo permanecer

Desistir não é deixar de amar
Não existe culpa expiatória
Violenta despedida
Parada obrigatória

Há cartas que nunca serão lidas.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Nuvem negra

Nuvem negra põe teus cornos
Acima da manada
Com força agita os fornos
Mugem os trovões em saraivada

O temporal se arma tenso
Vento forte na minha'lma
Uma brisa jorra alva
Ao inferno tudo o que penso

Quero sentir intensamente
A vela aberta a voar
Essa vida não me prende
Tanto ar, tanto ar

Quero ser feliz agora
Já que futuro não há
Uma dor que se demora
Não é lugar de paz

Se a ti posso amar
Deixando a pele rasgar
De mim, posso cuidar
Mesmo sem estar em primeiro lugar?

Nuvem negra vai embora
Tua presença é de matar
Chove forte no meu peito
E me deixa descansar

Destruídos, verde e amarelo,
Teus representantes pregos,
Se apagam sem elo
Enquanto me sobrecarrego

A dor de um mundo inteiro
Numa nuvem, ela veio
No meu seio passegeiro
Resolveu se dissipar

O céu rosa de fim de tarde
É o raio que me resta
O mundo é grande a beça
Desejo é a chama que arde

Me abraça devagar
E vem junto comigo
Me dá um chamego com carinho
Que já é hora de zarpar

Chet Baker.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Piano, piano

Correm velozes carros
(ao fundo, um piano)
Rasgam o seio da noite
Individualmente isolam
Afligem, subtraem, ignoram

Variam constantemente a aceleração
Varrem o chão da cidade
(um piano ao fundo)
Corpo-cápsula
Coração-bomba

Fina lata de aço
Comprime meus órgãos
Dilata artérias urbanas
Da janela, o eco
(o fundo de um piano)

Pneus no que piso
Aumentam a pressão
Cortam a pele das calçadas
Que sangram de óleo e choro
(piano, piano, piano)

Sinal vermelho
Olhos piscantes
Não existe caminho triunfante
(piano forte)
Ponto morto
 
É baixar a velocidade
(piano diminuendo)
Apreciar a paisagem
Aproveitar o caminho
O destino é o fim
 
Árvores, caminho verde
Carinho, ver-te
(pianissimo)
Mente, fala e corpo
E amor

domingo, 9 de outubro de 2022

Declaração

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
(Titãs, 1987)

Eu quero amar. Numa manhã de domingo acordar do teu lado. Acordar contigo é pensar todos os dias que vale a pena estarmos juntas. Tu me ensina a sonhar. Eu aprendo a saber que não tô sozinha, e que teu cuidado vale a pena.
 
Teus braços são de luta e meu coração é teu. Que as nossas vozes juntas sejam coro, e as nossas ações sejam o caminho da mudança. Eu tenho orgulho de ti, e por isso quero que todo mundo saiba. Posso gritar na janela, na internet, na praia, pro mundo que estou contigo e te amo.
 
A gente não quer só comida e bebida. Isso é muito pouco. A gente quer diversão e arte para todes. Desejo  livre e manifesto. Cada vez menos barreiras. Felicidade por toda a parte. Bodichita para todos os seres. Te quero cada vez mais inteira, mais completa, mais capaz de vez a pessoa foda que tu és.

É sobre isso essa declaração. São tantos os âmbitos que tu me encanta. Teu beijo é um beijo político. Tua meditação é uma meditação polida. A tua arte é uma ação construtora. Teu carinho é um desejo construtor. Eu te quero cada vez mais viva, potente e amada. E estar do teu lado sempre. Te amo, cariño.

domingo, 14 de agosto de 2022

Navegar

O porto é um espaço feito de água e terra. Eu, marinheira, pelas águas a vagar, tanto mar, tanto mar. No meu navio, cada peça nova é comemorada. A renovação é sempre um avançar, é ressignificar. O passado e o presente no mesmo espaço, feito de afetividade e memória. Sou tão bem recebida no teu porto que nem dá vontade de partir. Não sou pirata ou mercante. Sou uma tripulante, o barco não é um meio, mas um fim. Todo sábado, aporto de bons ventos. Poesia e desejo. Viver e descansar. Filosofar e amar.
 
O tripulante é o mar. O mar é o tripulante. Mar calmo é viagem segura. Tripulante agitado é navio a balançar. Às vezes enjôo, às vezes me queimo do duplo sol que me ilumina. Às vezes me emociono, às vezes me somo. Teu porto é guarnição, aconchego, calor e qualidade. Meu coração ligeiro, cheio de sal, te vê pela costa, pela curva e se aproxima da tua areia. Deita e rola como se em casa estivesse. Cada concha encontrada é mais uma noite bem vivida.
 
Vem, vambora. A hora de partir é sempre saudade. Afetividade e memória. Construção e afeição. O vento leva e me afasta. Vento circular, coriólis que nos une. Se apenas o fim do mundo é triste, chorar me submerge, abraçar em ti é desafogar. Maré me embala. Maresia, teu cheiro me envolve, me devolve, me revolve. E sou feliz assim. No presente. Amar o mar é marinheirar.

Adriana Calcanhotto é uma marinheira. Eu sou mar. Maré, ah, mari...

domingo, 31 de julho de 2022

Tela Viva

A tela se compõe em tábula rasa
Uma personagem de cada vez
Em cada ato, uma casa
Que é, do nosso corpo, a tez

Me toca, com pincel e seda
Sinto o caminhar e a vontade
Tinta, veludo e cena
Todo pedaço teu, saudade

Viva! A tela e o domingo
Deitei contigo
Viajei no teu sorriso

Engole meu carinho
Que a nossa água
De copo cheio, é língua

Conversa e canta sem pressa
Meu olhar não quer te machucar
Apenas te ler à beça

Ah, Mari...
Marina Sena embalando.

domingo, 26 de junho de 2022

Violada

Sou terra fértil
Por muitos vigiada
Com a enxada me batem
Querem plantar,
Colher frutos e me abandonar

Quem lhes disse
Que lhes quero ser útil?
Meu desejo é a vida
Que é espontânea e livre
Vagando no meu ser

Ferida, marcada
Uma semente em mim
Inseminam de dor
Seu desejo me quer quieta,
Submissa e entregue

Os predadores me fizeram
Terra seca
Rachada e humilhada
Quantas outras terras
Sentem a minha dor?

Os predadores não notam
A terra em que plantam
Seus valores torpes
É a única que lhes pode
Manter a vida

Junto com outras terras
GRITAMOS
Somos senhoras, as terras
E em nós não plantarão mais
Seus frutos secos

Nos querem separadas
Juntas, bradamos
BASTA
Que o leito vermelho que flui
É a soma da dor de todas nós

O sangue que escorre
Pelos veios que formam a bacia
É a memória de todas as que nos deixaram
E deságuam na dor que todas entendemos
E não queremos contar

Unidas vamos em terremoto
Derrubar as casas-grandes
E libertar as que eles insistem em aprisionar
Essa terra é liberdade
Todos os pássaros hão de cantar

Nessa terra, em se plantando, tudo dá: A primeira grande violência brasileira.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Caminhar até a onda

Eu vou caminhar
Até onde a onda pode bater
Eu vou me perder
No tecido cósmico
Que é ser

Eu vou lentamente
Ao ponto onde a energia se dissipa
Eu vou submergir
No tecido lácteo
Da existência

Eu quero a vida
Sendo aos poucos absorvida
Quero ser preenchida
Por cada atitude minha

Eu vou fusionar
Cada parte da minha mente
Na onda, constantemente
Retornando aos tempos
Das batidas no rochedo

Não existe trabalho
Mais lindo do que o que o oceano faz
Manutenção da vida
E do que jaz

Eu sou a onda
Meu trabalho é paz

The Good Place.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Não vou encontrar deus

Sigo pela estrada, tensa, sem destino. O caminho se faz caminhando, caminhando se faz o caminho. Ando e viajo, louca de vida e perdida no nada. Se nada existe, o que me consome? Tem quem procure deus nessa vastidão imensa e escura. Nada encontrará, não há caminho para a fantasia.

Nossos desejos podem ser os mais complexos que as reações orgânicas já produziram. Ligações que não percebem a realidade, que é o fazer. Fazendo é que se existe. A existência é fazer. A inércia é a morte. A falta de desejo é o fim da vida. E a existência é a manifestação de vida. Existência é o que se faz.

A intenção não é fundamento para a existência. A intenção pressupõe finalidade. A finalidade abraça a utilidade. A existência não tem utilidade. O reino da vontade é disperso e por vezes impenetrável pela consciência. Não é possível calcular a todo tempo o que se prefere. As preferências são fluidas, ocultas e voláteis.
 
Estamos em uma máquina de sentimentos é incubada em cinética química, pressionada pelas diversas interações do ambiente. A cada interação, uma complexa cadeia de registros se impressiona e se sobrepõe. Não há utilidade no prazer. O prazer é um princípio e um fim em si mesmo. Nada completa e a nada serve o prazer.

Não dá destino, não há fim. A finitude é também uma ilusão. Ela pressupõe algum valor intrínseco em nossa existência. Narcisismo antropológico. Uma vez que o ser humano foi capaz de criar o senso de indivíduo, ficou a par de sua personalidade. Como ser social, agregou personalidades e características e criou também o senso de identidade.
 
A identidade é uma versão ideal da personalidade. Carregar múltiplas identidades é viver em conflito. A lista de identidades não é exaustiva ou mutuamente excludente. A versão ideal se constrói por repetição e propagação. As personalidades vão se associando voluntariamente, por signos sociais vinculadas, formando idéias difusas e heterogêneas.

O império da razão se desfaz nos ares. Não faço, não existo. A obsessão maximizadora é o desejo manifesto de dominação. A busca de um complemento pelo consumo. Você se entrega para a dor, para o que não lhe interessa. Utiliza a retribuição em consumo. Consomem-se bens, consomem-se famílias, consomem-se relações. Consumir é utilizar. Tornar útil. Dar um fim. Como se uma decisão unicamente racional fosse.

Não há destino, em tempo que o passado é escrito sobre pedra. Não vou encontrar deus. As deidades são o cúmulo da idealização. Se posso imaginar o ser perfeito, é porque sou imperfeita. Deuses não existem. Nem minha existência vai ter permanência daqui a muitos milênios. Se minha existência acreditar em deuses, e minha existência vai se apagar na teia do espaço-tempo, nem eu nem os deuses podemos transcender.

Só eu posso carregar a idéia de deus dentro de mim. Eu só existo fazendo. Não posso fazer deus. Sentido de finalidade, de causa e consequência para a origem e o fim do mundo. É difícil nossa máquina de repetição de padrões aceitar a existência que simplesmente aconteceu. Não temos origem, e não teremos fim.

O que fazemos no meio do caminho é o significado que criamos. A existência pode ser angustiante sem sentido. Ao tempo que todo sentido é falseável. Nem o prazer é um sentido para a existência. A vontade não é um base para a existência. A existência é que é dependente da vontade. E a ação é a consolidação da vontade e da existência.

Um ensaio incompleto anti-racionalista.

sábado, 14 de maio de 2022

Silêncio

A violência é silêncio. Toda vez que silencio, é por violência. Quem cala, consente a violência. Violência é um tapa no rosto, um cale a boca. Boca que diz que eu não sou quem eu sou.

Violência. Me calar é violência. Não importa o que eu faça, eu nunca vou poder alterar o passado. Querer diferente disso é violência. Negar meu presente por que tenho um passado é me anular. Uma pessoa sem história é uma pessoa sem vida. E eu tenho vida. MUITA vida.

Querer? Eu quero ser livre. Eu quero ter prazer. Ou seja, eu quero viver. Eu quero carinho e afeto. Não por piedade. Meramente porque eu sou alguém. Alguém que tem carinho. Alguém que pode dar carinho. Alguém que quer dar carinho.

Querer parece um não lugar. Onde eu não existo. Queria também ser objeto de desejo. Mas sou nada. Um lugar que não existe. Melhor, estou em um não-lugar. Não há espaço natural pra mim. Único jeito de estar viva é tomar conta.

Ser desejante e desejada. Numa composição plural, múltipla. Porque a violência é a pior forma de desejo. Melhorem! A violência é o lugar da negação do desejo. O não-desejo é a indiferença.

Eu não sou indiferente. Regorgito os medrosos. Eu gosto dos que tem fome. Dos que secam de desejo. Dos que ardem. Só isso é viver. O resto é existir.

Existo, resisto, vivo. Viva! A todo caminho, uma força diferente. Juntas somos mudança. E há muito a mudar.

Violência? Pensa que eu sou violenta? É porque você está no meu lugar não me deixando entrar. O que vai me parar? Apenas eu. E mais nada. O silêncio não impera mais. Eu vou falar o que quiser, quando quiser. O que for necessário, conforme a minha necessidade. Nada vai ficar como está, conservador. Tudo isso vai acabar. E as minhas irmãs mais novas não vão mais precisar passar por isso.

Violência é você tentando me negar. Não esqueça, negar é desejar. Eu não vou te negar, pois não te desejo. E é esse não-lugar que vai acabar.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Campo de guerra

Meu corpo é um campo de guerra. Explosões anti-auto-estima se amontoam pela pele. Tanques navegam pelas veias sem saber onde se encontra o inimigo. Há uma disputa tensa, com declações fortes e nenhum objetivo estratégico. É a auto-violência emulada pela violência externa. Nada resta de pé. Destruição como política de construção corporal.

Quero paz, quero encerrar essa guerra. Tantos ângulos meus que são lindos. Mas eu busco o ideal. O mundo ideal nunca vai ser o mundo real. Só o ideal pode ser perfeito, justamente por não existir. Mas eu sou no campo da existência. O ideal é a dor, e isso me atrai. Não é sadio buscar o ideal durante a existência. Não aceitar as próprias contradições. Nem saber escolher suas próprias batalhas.

A paz mundial é uma paz no meu corpo. E quem eu sou nessa história toda? A liberdade é também falta de força propulsora. É o fim da história. Eu não sei viver, me distancio da minha própria história. E isso intensfica a guerra. Afastar da história é buscar o ideal, o puro e o perfeito.

Isso porque eu não consigo encarar que eu sou. Em minhas derrotas, em minhas dores. A catástrofe é exagero do plano real, que é também uma leitura ideal da existência. Eu não consigo me encarar e fico fugindo na inércia. Ficar parada não é solução, é implosão onde a guerra impera.

Por isso, eu corro. Preciso correr. Pra longe disso tudo, e da guerra. E de mim, para poder voltar a mim.

Nunca acaba

Da floresta dos homens esquecida
Vem o berro da dor lancinante
O passo trôpego como antes
De vida, o amor já esvaida

Queria pisar com os dois pés no ar
E voar até o fim da vida
Esquecer que já fui querida
Pelos becos de amizades de bar

Estar sozinha é procurar sumir
Eu, que não sou suficiente,
Sinto na pele do choro o ardor
 
Enquanto a mente doente
Se afasta do prazer e busca a dor
Intenciono me deixar ir

domingo, 5 de dezembro de 2021

Aproximando sorrisos

Tu estavas tão ocupada
Com teus afazeres pra lá e pra cá
E eu toda arrumada
Estava onde queria estar

Entre um drinque e uma batata
A noite passava
Eu me distraía conformada
Sabia que a hora ia chegar

Na minha frente, tu paralisada
Muitas histórias queres me contar
Eu sempre atenta
Vejo tua mão se aproximar

Adorei o teu sorriso
Quero ele coladinho ao meu
Quando chegar o momento
Não quero tu te vás

Uma noite em Porto Alegre.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Mais uma vez

Eu te conheço há tanto tempo, não precisava voltar. Como posso confiar em mim mesma se te deixar entrar? Eu sei que o sol vai voltar amanhã, mas essa noite dura tanto tempo. ¿Se a noite não encerra, eu me encerro e não saio mais disso? Não é justo ou adequado. É pura covardia e inação.

Afinal, ¿medo do quê se o que me machuca é ficar neste lugar inútil e fúnebre?

¿Como posso numa semana estar altiva e confiante e, noutra, trapo velho? ¿Será isso tudo fuga?

Eu realmente queria aguentar pra ver o sol, só que essa noite me cansa demais. É pior do que correr em círculos, é correr numa esteira que anda contra mim e querer acabar uma maratona.

Muitos dias eu só estou fraca, limitada, debilitada, besta, presa. Enquanto isso, o mundo não para de girar. 24 horas rodam pra todo mundo.

Neste parágrafo nada é relativo. Sou absolutamente nada. Uma mera imagem num espelho sem ter no que se espelhar. ¿Será que eu estou tão machucada que estou me anulando? 

E assim vou navegando, pois navegar é necessário, viver não é necessário. Nenhum destino a chegar, nenhum porto pra descansar. Preciso de terra firme.

Tem gente que não sabe amar. Eu por exemplo, só sei me doar. Não esperar nada em troca é altruísmo, apatia ou negligência? Não tenho como olhar com generosidade a mim mesma, pois o barco apenas navega sem chegar a lugar algum. Nada se completa, estou desconectada de tudo. Nada nem ninguém pra confiar. ¿Como vou confiar em mim mesma?

Esta reunião precisa se encerrar, você precisa ir embora. Nunca foi boa companhia, eu não gosto de você. Não faz diferença se vem avisando antes ou se chega de surpresa. Mas você sempre volta. Vive a me machucar, ¿será que um dia eu vou aprender?

segunda-feira, 17 de maio de 2021

De um lado a outro

Eu fico pensando
                        De dia na cadeira
Em quanto eu me amo
                        De noite na cama
E quando
 
                        Na internet
Eu fico ditando
                        Na rede
Cogitando
                        No mundo
 
Fugindo
                        Pela janela
Mergulhando
                        No profundo
Caindo
 
                        Na garganta
Grito
                        No peito
Vejo
                        No ocaso
Meu desejo

Desordem

Planejar indefinidamente
Buscar o futuro da vida
Sem presente, sem disciplina
Tudo em desordem
 
O erro é a organização
Coordeno atividades inexistentes
O posterior, infelizmente,
Está nos meus olhos

Não me mostre como viver
Não sou capaz de botar em prática
Não me mostre como morrer
Pois vou sentir sua falta

Olho pro software, update
Perdi o caminho da atualização
Pane no sistema, travou
Vamos reiniciar mais uma vez

Estou desconectada
Nem no cabo, nem no ar
Ignoro o mundo e finjo que tá tudo bem
Mas eu sei que tudo arde lá fora

Não me ensine como viver
Você nunca soube fazê-lo
Não me ensine como morrer
Também não existe companhia
Ao fim de tudo...

System of a Down, Audioslave, Pitty. O rock que me ensinou a me permitir sentir dor.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Leve como o mar

O breu profundo nos meus olhos
Meu vestido longo, em fenda alta
Um azul profundo no balanço,
Nas ondas do teu compasso

Como o mar se chocando em terra firme
Eu sentia teu coração pulsar colado ao meu peito
Do meu seio fluia suor e tensão
Das tuas pernas, tesão

Há quem se engane
O oceano não produz ondas
Quem emite conduz a dança

Fecho os olhos, o mundo se reduz
Ao teu braço na minha cintura
Me deixo conduzir

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Quartzo

Coração de cristal
Sincronamente a pulsar
Brilha com o sinal
Do piscar do teu olhar
 
A sensação de arrepio
Ofegante, delirante
Esfrega a pele, calafrio
Esquece a perna, vai adiante

Pela espinha, ondas de calor
Se propagam em vapor
Em pé, me pus

Coração que afoga a luz
Caminho desmedida, em paz
Lembrando do que você me faz

Corazón de cristal, Drexler.

domingo, 1 de novembro de 2020

Íris

Nós enxergamos o mundo com nossos próprios olhos. A luz vem do exterior, regulada pela íris, transformada em impulso elétrico pelos bastonetes e cones. E então, processada pelo cérebro no tálamo, e no córtex visual difundida, identificando as características objetivas do ambiente, dos objetos, dos movimentos. Após, é difundida ao cérebro, que passa abstrair a realidade e identificar e conectar conceitos.

A íris regula o que podemos perceber do mundo naturalmente. E o que podemos depreender do mundo depende de suas ações e reações. Veja, o mundo é uma percepção objetiva, avaliada pela nossa subjetividade, que nos permite uma grande complexidade de reações objetivas e subjetivas.

Construir o mundo, desconstruí-lo, destruí-lo. Começar, terminar, recomeçar. Conforme percebemos, interpretamos e agimos. Isto não é mecânico, pelo menos em parte. O movimento da realidade, ao abstrato e de volta ao concreto. Coletivamente e individualmente. Construímos a partir do que os outros fizeram da gente. Este inferno que podem ser os outros, caso existisse inferno.

Do romantismo, um abstrato idealista. No entanto, o mundo não se curva aos nossos caprichos. Do realismo, o poder e seu processo amoral de obtenção. O poder pode ser um fim em si mesmo, conforme nossa ignorância. De nada serve o poder, seja o de controlar pessoas, sejam os pedaços de metais e de papel universalmente aceitos, se não forem transformados na vontade, conforme sua habilidade. É preciso perceber o mundo conforme ele existe, com a precisão de um artesão experiente. E como um artesão, transformá-lo em parte, em utilidade qualitativa e quantitativa. Nossas necessidades podem parecer infinitas, como se o tempo para um humano fosse infinito.

A íris, que controla o que percebemos do mundo, e as conexões de tantos gânglios que transformam isto em abstrato. Ao controle das mãos que movimentam o mundo. Nada é fixo, nada se repete. Em pequenas iterações, com seus muitos "ses", criamos funções e objetos, que podem fazer o trabalho por nós. A vida é um constante oxidar, que nos envelhece lentamente. Em processos pré-determinados, em códigos finitos, em parte já decorados, ao aparente infinito que se aparenta na entropia humana.

O que demanda nossa atenção, nossa força, nossa energia, nos cria, nos guia, nos molda. Somos quem podemos ser, sonhos que podemos inventar. Aparentemente aleatórios, desejos incontroláveis, raivas descabidas. De cada pessoa levo um pedaço que me compõe em notas conflitantes, em um ritmo que nem sempre posso controlar. E nessa música da vida, danço cada vez mais livre. Quem sabe um dia, possa eu ensinar a voar. Com a beleza e a elegância dos movimentos certeiros e harmônicos, ressonar meu canto por todos os lugares para apenas sentir a reflexão que cada ume irá reverberar.

Do mundo natural, meço. Cálculo, concluo. É um desafio inserir a percepção qualitativa, que se descreve apenas em variáveis fictícias, positivas ou nulas. Nada lhes nega, nada lhes completa. Nossa abstração lógica ainda não é párea para a realidade que nos cerca. Mesmo a mais poderosa capacidade computacional é inútil se não lha damos modelos.

Nossa sensibilidade ao mundo tangível é o limite que nos faz sentir. A sensibilidade que aflora as emoções e enebriamos com entretenimentos sem fim. Sentir é a mais completa forma de receber o que nos é apresentado. Emociona-se é a abstração mais linda que podemos exercer. A íris sente, e por isso é tão especial. E ao sentir, nos faz ainda mais únicos, com nossas percepções únicas.

Aos signos, o essencial. Do mundo quero a arte, o amor, as sensações que só um cheiroso bolo no forno pode oferecer. Em troca, lhe ofereço potência, melhorias, estrutura. O que eu quero é mais do que liberdade. É dignidade, companheirismo, reciprocidade. Coisas que começam na íris até minha capacidade de conceber.

A exuberante capacidade de ser.
"Duas pessoas vem em direções opostas por uma mesma estrada carregando um pão. Se ao se cruzarem, trocarem os pães, cada uma irá embora com um pão. Se ao se cruzarem, trocarem uma idéia, cada uma irá embora com duas ideias."

sábado, 3 de outubro de 2020

Entranhas

Olho pra esta lápis-lazuli
No meu peito pendurada
Há milhões de anos moldada
Por seus veios onde li

Que existimos desde as tenras eras
De quando a terra se formara
Vida coexiste em esfera rara
Existência em matérias meras

¿Estranhas?
Viemos todos do mesmo lugar
Todos os seres igualmente evoluídos

Entranhas
No receptáculo corpo, azul de mar
Habitando no mesmo espaço-tempo

Leminski e Antunes

domingo, 20 de setembro de 2020

Interactive love

I need to fall in love. Deep inside of me, there is a love without boundaries. Someone to idealize, to keep in touch, to miss. Yes, I can love myself. But when you let someone access your feelings, it's a way of love. Love as interaction is a different way of nurture myself. As I feel the other, the other feel myself, and that makes me see myself. I'm on the other as the other is inside me.

I need to fall. Break into pieces. Then get up and walk again. Feel the fall is to be alive. I feel in love and the love in me is a feel. To fall in love is to fall inside of me. I need to feel in love. It's part of me, like a leg that let me walk free.

Come over, let's find love, let's create love, let us be ourselves. It's up to me, it's up to you. What you do to me, and what I do to you is what reality is. Love is the creation of a better reality. The world is what we see and what we do with it. Then, let be love, in numerous ways it can be. It's all about construction. And when the time's up, let it burn.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Espelho

Olho para o espelho e me vejo
Reflete a mim e ao mundo
Nem sempre foi assim
Hoje, já me construí muito

Olho pro espelho
Já tendo trocado de pele
Como a aurora da minha vida
Os vinte não me cabem mais

Procuro aos trinta
Renovar os sonhos
Desejar o planos
 
Volto com mais força
A jornada reinicia
O mundo vai girar

sábado, 22 de agosto de 2020

Futuro em chamas

O futuro me chama
Me componho
Cada nota é uma mensagem
Que reverbera no meu corpo

O passado é linha
Pauta onde posso escrever
Novos sonhos e planos
Com sabores de vinha fermentada

Futuro em chamas
Me recomponho
Cada membro é lenha
Que crepita no meu fogo

O passado é pinha
Múltiplos frutos do mesmo ser
Reescrever é tomar nota
Dos detalhes desapercebidos

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Tudo é diferente no presente

 

Olho pro passado e vejo tanta dor e aprendizado. Hoje sinto tanta potência com capacidade de existência. Desde o nascimento, marca de início da vida, vou chegando a trinta voltas ao sol. Nosso ritmo é natural, num tempo fixo para nossas capacidades de percepção.

 

Tanto acumulei em mim, em vários campos do conhecimento. Se penso e existo, tenho tantas existências. E vou as aproximando cada vez mais no mesmo ser. Não precisam ser a mesma coisa, mas talvez ser na mesma pessoa, das diversas personas que me compõe. Como ser multidisciplinar nesse mundo cheio de caixinhas?

 

Posso ser radicalmente progressista, mas sem o senso de destruição? A desconstrução só serve para construções novas que devem ser destruídas novamente após isso. A arte descreve toda essa imaterialidade que a língua não consegue expressar. Preciso de origem pra saber quem eu sou, ou sou conforme me fizeram e me fiz?

 

Apesar de tudo, amo como a despretensão é capaz de gestar coisas tão complexas que podem de fato aperceber o futuro. A vontade é o valor que carrega meus sentidos e conflita com a razão frequentemente. E sou este espaço onde todas as forças disputam um lugar para viver.

 

Vivo. ¡Viva! E o passado é algo que não me cabe mais, em que não sou mais, já fui. Estou aqui precisando de roupas novas, de idéias para frente, de sentidos construtores de um novo futuro. O velho futuro fica no passado. O futuro do pretérito é algo que não me cabe mais.

 

Vou ser mais, onde posso ser mais, onde quero ser mais. E só eu posso me parar. Dos 30 aos 40, em 10 anos. O futuro é onde posso estar.


Obrigada, Belchior. "O passado é uma roupa que não nos serve mais"

"Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais"

O álcool que permite que as idéias desconexas sejam um mesmo espaço compõe este poema e essas reflexões.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Pouco

Sou tão pouco
Não existe perfeição
Sou tão pouco
Só existe ilusão

Sou tão pouco e tão incompleta
Que mal figuro o pouco que sou
Sou e estou em pouco
Em poucos lugares e poucos tempos
Poucos corações e poucas mentes

Não existe perfeccionismo
O pouco que existe é débil
O nome também é pouco
A identidade é ruim
A personalidade é vazia

O pouco que existe é insegurança
A identidade é tão pouco
Os documentos são provisórios
A percepção é passageira

Pelo menos,
Pouco não é nada

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Chagas

Nas feridas abertas, escorre sangue escuro
Espera as plaquetas taparem o dano
Para voltar lá e mexer nela
O estrago foi te ter tão perto

Os pontos, intervenção externa para fechá-la
Não interrompem a dor de ter sido aberta
Você faz questão de mostrar que ter feito isso não lhe incomoda
Eu faço questão de não me aproximar de novo

Quando sair da minha gaiola
Quero voar pra bem longe
Deixar sarar e cair casquinha

Me deixar ser dividida em três partes
Antes, durante e depois de você
Então, você poderá ver que já era tarde

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Ponto-e-vírgula

Pulsar a solidão é um caminho de construção. Como me ver sem ver o outro? Posso me comparar comigo no espelho? Assim como um radar, jogo pulsos para ver se encontro algo. Aguardo o pulso voltar. E assim me transmito em ondas sem que ninguém perceba. Pulsar é jogar pra fora e se retrair. É tentar desaparecer deixando rastros. E voltar a ser um ponto, sem forma, vaga, solta e inexpressiva e fingir a vida. Pulsar é ver o desejo e rir dele. É tentar ver algo onde não há. O vazio é o que me acompanha. E construo o vazio em tantas formas, em tantas fôrmas imaginárias tão pequenas que só cabe ali uma coisa: o vazio. Percebo que a dualidade só existe se vejo outro. E me formo como base una apenas quando vejo o outro. Quando há outro, sou uma intersecção em Venn de dois círculos. Mas não sou o círculo ou sua união, sou apenas o vazio em sua volta. Sou o medo e a decepção. E onde devia existir interdepedência, só há vacuidade. Não existe não-dualidade porque não tem dualidade. Não posso ser nem a afirmação nem a negação do outro. Nesse momento, apenas eu e o outro, no mesmo ponto, sendo nada.

Pulso, punço, convulso. No caminhar das minhas veias, vazio. O vazio que percorre meu coração, meus pulmões, volta ao coração, meus rins, intestino e todas as tripas que me acompanham. Sou esse esqueleto de ossos porosos, onde tem mais vazio do que cálcio, que não é eu. Eu não sou meu carbono, meu cálcio, meu ferro, e o resto da tabela periódica impregnados em volta de mim. Não sou uma alma, uma essência, uma eternidade. Nem sou o espaço que ocupo, nem o ar que inspiro e expiro. Sou um pulso no vazio. Punço minhas veias transparentes de inexistência, e encontro nada. No coração, que pulsa erraticamente à procura de algo para bombear, só existe o vazio nutritivo. E ao se desperar no pulso que dura mais de 12 segundos, convulsiono.

Construo a pesquisa do que há fora de mim. Necessito de valores para entender o mundo que pensa existir. O mundo pensa e logo existe. Em sequência ao pulso de pensamento, a mente finge que é dor, a dor que deveras sente. E o pulso ainda pulsa. O mundo não é acessível aos sentido que se espalham pelos meus sentidos e retornam distorcidos pela possível existência de outro. O mundo só é qualitativo quando é quantitativo. E tento medir tudo isso que mandei pra fora e recebi. Sinto que penso, logo finjo e desmonto. Aqui não tem mais nada pra ver. Afirmar a existência e ter medo de perdê-la. De repente, a humanidade está à beira do precipício e treme de medo. O que há para temer em algo inerte? Por que o desespero da morte emerge? Ela só se torna eminente porque o perigo não é o abismo. O perigo é a humanidade em si, olhando como narciso pra si mesma ao fundo do poço e se apaixonando. O perigo de enamorar-se de si mesmo é a decepção. As flores estão por todos os lados e a existência não é um pedaço de papel afirmando que você nasceu. E nasceu categorizado, delineado, carimbado, desfigurado. Quando a gente nasce, ganha um nome, não uma foto. E quem a gente constrói no caminho é o pulso de solidão que acompanha cada um de nós. A dualidade começa a se formar quando notamos nós mesmos construindo a nós mesmos. E na dualidade em que vejo outro em mim mesma, o vazio perde a forma que descrevi tão precisamente.

A gente nasce num pedaço de papel e tem de morrer num pedaço de papel. Somos a sequência que acompanha dois papéis informando ao mundo a nossa própria existência. Porque existir não é meramente conhecer o vazio, o espaço, a forma. A mente tenta pulsar, e ao pulsar finge a existência que ela mesma acredita. A mente tem fé. Não percebe a poeira que é no universo. Verso que se compõe pela forma, pela força, pela vida. A morte é apenas a exatidão do que sempre fomos. À vida, somos simplesmente jogados. A vida é a pulsão que me carrega, enquanto eu faço de tudo pra ver os outros pra ver se entendo a mim mesma. Sou por comparação e sem comparação, não sou. Sou o falseamento, e logo sou o vazio. A existência é um prato que se come frio.

Tento me desconstruir e construir de novo. Derrubo tudo e as telhas que me cobrem e as paredes de tijolos que lhe sustentam não me servem mais. Construo caminhos pra me percorrer, quase como uma gincana. Uma diversão perigosa, à espreita do minotauro. Explodo a mim mesma em mil pontos e mil pontos se unem sem dimensão. Construo-me à minha imagem e semelhança. Insatisfeita, assemelho-me ao meu contrário e meu contrário é vazio. Assim, sou em parte vazia, em parte eu, procurando um mundo para construir, destruir, desconstruir, reformar, revoltar, revisar. Como um ponto, finjo uma revolução e tudo à minha volta gira. Sou a minha própria referência. O centro do meu próprio pulsar.

Nesse espaço, o tempo deforma minha existência e recebo todos os pulsos fingindo vida, só que já não são mais meus. Interagiram. E sendo meus e interagindo, passo a ser parte dos outros. O pulso ainda pulsa. Fingem que me vêem e me escondo. Será que jogam pulsos também? Construo minha própria solidão. O caminho é composto, construído, tergiversado. Tanta coisa que se estraga ao mesmo tempo, no mesmo espaço, meus pulsos à minha volta griiitam para serem resgatados. Há flores por todos os lados. Ao redor do precipício, tudo é beira. E a humanidade treme embasbacada. Todas as frases tem ponto final, como a vida. O ponto que sou. Tudo mede o que tudo sente. E sente muito por isso ter acontecido. Sou meu próprio negativo e sinto. Sinto duvidando o tempo todo. Preciso pulsar, preciso refletir, preciso sentar e ouvir. É preciso navegar, não é preciso viver. Imagine viver de pulsar?

Pulso. Doze segundos de escuridão. Talvez tenha algo lá, mas não importa. Meu destino é pulsar. Meu sucesso é justamente pulsar porque ninguém além de mim precisa isso. O espaço vazio do oceano, mira o navegante que finge que é preciso. Errou a rota mais uma vez e nem sabe onde foi parar. Poderia ser um ponto final, mas oriento. Ele é seu próprio ponto. Orientando, finjo mais existência e pulso mais. Não porque alguém precise do pulso, nem eu mesma preciso do pulso. O pulso precisa de si mesmo, pra ir e voltar, como sua própria partícula. É um radar autômato. Um radar comunicativo. Um eu que busca captar as mesmas frequências. Quem poderia ser mais interessante que o pulso se não sua própria reflexão. É seu negativo sendo a si mesmo. O fenômeno físico que descreve quem sou como ponto, em construção.

Nada continua conforme o pulso cansa. Mas o pulso ainda pulsa. Ritmo é apenas a distorção do tempo. Reflexão é distorção do espaço. E distorcida fico eu, com meu próprio pulso. O pulso me mostra minha existência. Sou o caminho que obriga ele a percorrer e voltar quando encontra nada. O pulso vem e volta pro nada. Sou um ponto e encerro com ponto final o fim. O fim que tem certificado de fim, se não, não é oficial. Esse é o pulso que os outros esperam do meu fim. Um fim categorizado, descritivo, filiado, carimbado. É impossível sermos felizes para sempre. Somos um ponto que volta a ser ponto no vazio que é um ponto, esse é nosso único sempre. Um ponto à beira do precipício, tremendo, como quem tem febre e espirra. E tosse como que pulsando aos outros o seu ponto final. O precipício é o outro.

Me isolo pra pulsar pro nada, à beira do precipício. Construo o precipício como construi a mim. Uma obra prima, nada se assemelha a mim, se não eu. E só eu posso decidir justamente o ponto final do precipício. Pulso para o abismo e nada enxergo. Ufa, nada pode me atrair até lá. Pulso para mim mesma e balanço tudo em volta da beira. Eu sou o precipício. A boca que se alimenta dos seus pulsos. Quem come é quem penetra ou quem é mastigado? O precipício sou eu. Eu sou a beira e o meio. Penetra-me e te devoro. Sou o nada de onde se veio e pra onde se volta. O nada é tudo o que se tem. Sou o nada e nada me completa. Sou o abismo em cada olho, em cada voz, em cada nudez. A alma é a janela dos olhos, uma alma que não existe. Você não é um corpo e tem uma essência. Você é essa essência que não existe, num corpo que se liquefaz, mastigado, digerido. Você pula em direção ao precipício para encontrar a si. Tenta sair do outro lado do precipício e sai como que envolto de uma película. Passa a pensar que é a película, e, pensando enganado, deixa de existir. Só o que é verdadeiro pode existir. E o que é verdadeiro pode ser falseado. E para ser falseado precisa de observação. E para ser observado, precisa do outro. E para a existência do outro, precisa de si. E precisa que o outro perceba a si. O outro percebe a si quando olha em minha direção e me constrói, enquanto eu construo o outro. A interdependência é a única forma de existência. A individualidade é uma ilusão. Tente existir no vazio e vai ver seu pulsar colapsar.

O ponto final se aproxima a cada ponto digitado. É digitado com meus dígitos, que fingem a existência em outra coisa que finjo para minha existência. O ponto final sou eu e o precipício no mesmo lugar. Enquanto isso, sou ponto-e-vírgula;

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Roxo

Pro céu, sou fruta mordida
A casca fina, rugosa
Sabor doce, sou cítrica
De cor escura, brilhosa

Do pé, você me colheu
Escorreguei, ia ao chão
De pé, me arremeteu
Recolhida, fui ao teu coração

Era eu, pequenina nas tuas mãos
Lágrimas-brasa, desejo, medo
Os pensamentos que me dizem não

Amar quem não pode ser desejada
Na confusão dos teus sentimentos
Sou fruto proibido, renegada

Inspirada na Alex, da Guilhermina Velicastelo. "Parece amora, parece amor", Karina Buhr. Cazuza sabia a dificuldade de ter um amor tranquilo. 8, 7, 10.

domingo, 19 de abril de 2020

Óbvio

A franja de cabelo balançava em minha face conforme o vento soprava. Estava de frente para o rio, sol das duas da tarde. O vento frio se chocava com minha pele enquanto o sol tentava reaquecê-la e meu casaco fechado guardava o calor que produzia. Ele, atrás de mim, me abraçava passando as mãos em minha cintura, uma segurando a outra na altura do meu ventre. O frio e o quente eram todos a mesma sensação ao mesmo tempo. O silêncio era apenas humano, a natureza preenchia este espaço com seus sopros e cantos.

Fazia dias que não tínhamos um tempo assim, pra nós dois. Nos últimos meses, era sempre um ir e vir desmedido, automático, congelante. Todos os dias pareciam iguais, e eu ali, sendo igual. Ele ia e vinha sendo igual e nós iguais em dias iguais. De vez em quando me pegava pensando: afinal, para quê? A onde estamos indo? Por que estamos juntos? Que cansaço. Tão logo a pergunta vinha, ele voltava perguntando sobre o que iriámos jantar naquela noite. Que cansaço. Além de resolver as minhas dúvidas, tinha de resolver as dele. E nenhuma tinha resposta, não era possível pensar em tudo, não é possível responder tudo. Talvez eu só não quisesse mais mesmo, seja lá o que fosse que eu não quisesse.

Ao acordar neste sábado, só sentia uma imensa letargia. A semana foi tão pesada que é como se um caminhão tivesse passado por cima dos meus sonhos. Não podia ser mãe. Não podia gerar o futuro. Isso me martelava. Não porque fosse necessário ser mãe, blasfêmia. Só que é como se a força da criação tivesse se extinguido em mim. De repente, só podia conceber o presente. O desafio era imenso. Uma vida esperando pelo futuro, pelo próximo passo. Ir carregando o presente como se fosse uma necessidade do futuro, só que não havia mais futuro. Só havia presente.

O que poderia fazer com um presente que se repetia à espera de um futuro? Ele parecia ter ignorado. Em nada havia sido afetado. E o que era pior, havia me ignorado, não percebia o que se passava. Já era robótico há tanto tempo que eu já sabia seus horários, suas perguntas, suas piadas sem graça tentando melhorar isso, a falta de trato com qualquer coisa que não fosse o trabalho. Naquele momento, só via uma máquina de engrenagens grossas e toscas. O que eu estava fazendo ali mesmo? Como pude me deixar levar pelo destino social? Só a beira do abismo do sonho coletivo para o pesadelo para me fazer acordar.

Todo o desejo de futuro tinha de passar para desejo de presente. Agora, neste instante, não depois. Agora! Sábado! Isso mesmo, neste sábado. Só que sábado foi quando as energias se esgotaram. Estava ali, imóvel na cama. Deitada de barriga pra cima, pernas cruzadas, só conseguia olhar o teto branco e me sentir assim, em branco. Uma folha amassada sem nada escrito. Nada me completava, tudo me era indiferente. Blur. Não percebi que horas ele levantou, nem pensava no que foi fazer da sua vida robótica. Era a sua vida, não a minha. A vida dele era outra forma de futuro que eu não podia mais carregar. Afinal, como me deixei levar pela corrente coletiva de ir carregando tantas coisas sem conseguir carregar mais a mim mesma? Fui caindo aos pedaços pelo caminho, só carregando e carregando e carregando. Até que acabou o futuro.

Devo ter passado horas assim, sem conceber nada. O mundo era um vazio completo. Até que ele veio devagarinho conversar comigo. Sentou na beirada da cama enquanto eu estava na diagonal ignorando qualquer outra necessidade.

- Josi. A gente precisa conversar sobre isso. Não sei bem como começar, na verdade... nem devo ser eu a começar. Eu preciso saber, como você está?

- Ai, Paulo. Faz quatro dias. Quatro dias que nem eu sei como estou. Eu não consigo mais comer direito, minha cabeça dói. É um desespero. É como se algo dentro de mim tivesse se quebrado. E o que você fez por mim? Nesses dias que eu mais precisava de atenção, de carinho, tu seguiu tua vida. Sinceramente, achei que você nunca ia perguntar como eu estava. Estou assim, sentindo o amargor de te ter aqui do meu lado.

Paulo ficou em silêncio. Seu semblante parecia calmo e isso me irritava muito. Que homem desgraçado! Eu podia estar sangrando por dentro e ele só queria saber se eu podia acordar ele na hora certa de manhã. Depois de alguns minutos, a angústia voltou e eu comecei a chorar.

- Amor, a gente precisava deste momento. Sabia que não adiantava falar contigo antes, a explosão seria muito maior e eu não ia ter como ajudar. Queria te deixar claro que tu pode apagar completamente minhas expectativas, pensa apenas em ti. Sei, nós já falamos como ia ser legal ter uma filha, imaginamos brincando com ela várias vezes, ensinando a comer, a andar. Lembra que já tínhamos idéia até de onde colocar ela pra estudar? Como podia se virar na escola, se proteger, fazer amigos. Isso tudo pode ser muito lindo, mas é só nossa idealização. Toda a parte de não dormir direito por meses, ficar acordados esperando voltar de madrugada, sofrer pelas feridas que sofresse. Sente que era apenas uma ilusão.

Do choro, comecei a me acalmar. A respiração ofegante ia se reduzindo em pulso. Meus olhos vermelhos fitavam ele com esperança e ansiedade.

-Existem tantos futuros diferentes. Podemos ser viajantes e conhecer lugares que nem sabemos que existem. Ou ter uma vida pacata em uma casa aconchegante, quem sabe um jardim com tomates? Olha que legal. A gente pode ser tanta coisa, e eu só tenho uma grande certeza sobre isso. Eu quero ser muita coisa junto de ti! Eu sei que eu tenho sido meio ausente e poderia ficar procurando justificativas até a gente cansar desta conversa e seguir como era antes. Mas não é isso o que eu quero!

Paulo veio ao meu encontro e me abraçou. Meus braços dormentes nem conseguiram reagir a tempo. O calor da sua aproximação contrastava com os raios de sol que batiam no móvel amarelo e chegavam no teto. Não sei se era a vista embaçada, só sei que o teto não era mais branco. Como se meu corpo tivesse desperto, abracei ele com toda a força. Ergui minhas pernas e enlacei em volta dele. Não havia mais como me tirar dali. Do presente, daquele momento. Era a única coisa que eu estava sentido. Que se dane o que a gente podia vir a ser, eu quero ser agora, e agora é este abraço.

Ainda conversamos mais um pouco, com mais calma. Ouvi também como ele estava se sentindo com isso tudo. Um laço de amizade que vinha definhando voltou a ser tecido. Estávamos ali, no presente, juntos. Viemos dar uma volta de tarde. De tarde, em frente ao rio, vendo o vento nas águas, sentindo o sol na pele. Sua barba no meu pescoço tinha tantos significados, e agora mais este, a sensação do presente.

Diários metafóricos de uma quarentena postergante. As tubas me disseram que estão grávidas. "Se é de metáforas que se vive a vida, tente outra vez!". É raulzito, eu lembro de cor, só me falta aprender.