domingo, 10 de abril de 2011

Quando fui minha

Mudando de ares, desta vez, um pequeno conto.

Quando fui minha

Acordara, distraída por uma música, de um sono profundo. A luz do sol espantava minha preguiça. Sentia-me nova, saciada e feliz. Levantei e olhei em volta, nada me parecia diferente, exceto eu. Mas por que minha cama está assim? Alguém esteve aqui que não fosse eu? As perguntas me embaralhavam a cabeça enquanto escutei barulhos vindos da cozinha. Minha atenção dispersa a música suave que tocava dentro de mim, porque agora estava focada nesta nova sensação.

Algo está acontecendo, o que fiz? De alguma forma, tudo mudou. Eu estou sozinha em mim mesma, mas há alguém junto comigo nesta casa. Junto minhas roupas do chão - eu nunca as jogo no chão - e me ajeito tranquilamente, afinal, não deve ser nada de perigoso. Aliás, o que fiz ontem? E só agora essa pergunta me aparecesse. Continuo calma, sempre confiei em mim, que nada de tão severo devo ter feito.

- Tá acordada? Da cozinha, surge a voz de um homem, num tom ligeiramente gentil.

Quem será este cara? Pergunto a mim mesma sem resposta. Era uma voz bastante agradável, é verdade. Era forte, clara e arranhada, assim como ele deveria ser. Quem será? Quem será? Fico sem resposta para mim e para ele. Talvez um minuto tenha se passado e eu sentada na beira da cama, com as roupas no colo e com uma ótima sensação de completude, fico a pensar em tantas qualidades para ele, ao mesmo tempo em que a janela aberta me chama a atenção para o lindo dia que se abre lá fora.

- Oi, linda, tá com fome? Pergunta ele com uma intimidade interessante.

Continuava sem respostas. Ele havia aparecido à porta do quarto, inclinado, só podia observar sua face. Seus traços retos, olhar fixo, lábios pálidos e uma expressão tão convidativa. Minha posição se desfez, e respondi, como se tivesse um reflexo retardado pela sua beleza, que sim, estava com fome. Ele abriu um sorriso e voltou à cozinha. Seus passos eram marcantes e ouvi cada um deles ecoar no corredor.

Quem era aquele lindo homem? Nem me importava mais o que estava fazendo em minha casa, só me importava quanto tempo ainda ficaria. Ele assoviava a música que há instantes me despertara. Não era apenas uma sensação na minha cabeça, vinha, feliz, da cozinha. Isto me deixava mais completa, não era mais um devaneio, não era um sonho, era real.

Vestida apenas com a roupa de baixo - lembro que ele já conhecia minha intimidade - me levanto e observo o dia. Tudo continuava lindo, a luz do sol me aquece e a árvore à frente ri ao sabor do vento. Passam se vários minutos e vou relembrando de cada momento do dia, e da noite, anterior. Engraçado como passam diversas cenas não importantes. Tudo tão corriqueiro que eu devia me sentir normal hoje, e era isso que me era estranho. Cessa a música e o som das folhas soa mais forte. Eu estava contente, feliz, aberta e viva.

A mão dele me toca nas costas, eu me viro rapidamente, surpresa por não ter notado a entrada dele no quarto. Foi como ele havia entrado em minha vida, tudo tão normal, tudo tão bom. Ele, então, sussura ao pé do ouvido: deita, o café está pronto. Esboçando um meigo sorriso, eu ligeiramente me sento, reclinada, apoiada por travesseiros, numa posição entre o deitado e o sentado.

Assim, ele, mecanicamente, eleva a bandeja que estava sobre a cômoda e me serve, ao colo, o café-da-manhã que havia preparado. Ele me servira uma xícara de café com leite e outra de café, duas torradas abertas pouco recheadas e duas frutas. Tive a impressão de que o café não era feito só pra mim, e logo após eu erguer a xícara de café com leite, ele completamente deitado de lado, apenas de cuecas, com a cabeça apoiada na mão fechada e cotovelo apoiado na cama, formando um triângulo harmonioso, destacando o volume do seu antebraço, ergue a taça de café. Enquanto eu estava levando a xícara à boca, parei quando ela tocou meus lábios. Ele estava com um sorriso tão atraente, tão lindo, tão charmoso, que uma pequena vontade me parou os movimentos e tomou conta de todos os meus pensamentos.

Brigando comigo mesma para não me entregar desta forma, desviei rapidamente o olhar daquela face, percorrendo todo o seu corpo - era como em antigas estátuas renascentistas em todas as suas verdades, definições e nuances - passando pelas minhas pernas - meu senso de sedução alertou fortemente que queria escondê-las, numa vontade de que fossem redescobertas e logo as tapo com o lençol habilidosamente com os pés - e passo a olhar o espelho que fica de fronte à cama. Que cena mágica! Eu o vi me devorar com seus olhos castanhos e o cabelo ainda desalinhado. Ele comia uma das torradas, enquanto eu peguei uma das frutas e olhei para ele. Mantivemos os olhos fixos um no outro, como que conversando o que nunca havia sido dito e que já sabíamos. A única coisa que intervia no nosso silêncio era ainda o barulho do vento nas árvores.

Enquanto eu saboreava a situação - restava em mim também o sabor da noite anterior - ele, num interesse claro, pergunta:

- Quantas vezes ainda vou poder ver seu lindo sorriso? Num lisonjeio que me deixou mole e derretida, fiquei entregue. Ele me fisgou e sua mão se moveu rapidamente largando a torrada, enquanto a outra destapava as pernas que eu recém havia coberto.

Terminamos o café-da-manhã tão depressa quanto no unimos novamente. A continuação foi de um carinho tão grande, de uma suavidade tão imponente, de uma gentileza tão determinada que eu berrei sons ininteligíveis para qualquer estranho a nós, que sabíamos o quanto um estava agradando ao outro.

Ele foi para o banheiro, ligando logo o chuveiro. Só então me dei conta de que já passava das dez horas da manhã. Por mais rápido que ele tenha se arrumado, foi grande o tempo para mim. Continuava sorvendo aquela situação, me deliciando com cada momento, com a certeza de me fazia muito bem gostar de mim, sabendo que assim podia gostar dos outros.

Ele saiu do banheiro pronto, de uma maneira impecável, com um porte alinhado e uma expressão de confiança. Talvez para que eu confiasse nele, entretanto uma segurança se traduzia nas suas palavras, às quais eu estava totalmente alheia, em negação por todo o tempo em que ele falava. Ele demonstrava confiar em si mesmo, como se tudo em volta fosse uma escolha sua. Então, entendi porque tudo estava diferente.

Sorrateiramente, deslizei e peguei a chave da porta. Ele me abraçou com uma intimidade, com tanto carinho, que eu transbordava e retribuía seu afeto. A compaixão que fluía entre nós dois era tão corrente que poderia quebrar um coração de pedra. Nos despedimos sabendo que algo de um no outro restara guardado.

Só agora lembro que ele dizia que queria ir embora, e percebo que ele estava certo em si, porque ele também havia escolhido aquilo tudo. Sentia me completa em mim mesma. Havia sido minha e só assim havia sido sua.

De que serve a arte se ninguém puder apreciá-la?

3 comentários:

Morena Bauler Chagas disse...

Fiquei tão presa que quando acabei de ler quase mandei uma mensagem.
Adorei.

MaDe disse...

Gostei tanto dessa

Natália Pereira disse...

Sua sensibilidade me emociona profundamente.