domingo, 26 de junho de 2022

Violada

Sou terra fértil
Por muitos vigiada
Com a enxada me batem
Querem plantar,
Colher frutos e me abandonar

Quem lhes disse
Que lhes quero ser útil?
Meu desejo é a vida
Que é espontânea e livre
Vagando no meu ser

Ferida, marcada
Uma semente em mim
Inseminam de dor
Seu desejo me quer quieta,
Submissa e entregue

Os predadores me fizeram
Terra seca
Rachada e humilhada
Quantas outras terras
Sentem a minha dor?

Os predadores não notam
A terra em que plantam
Seus valores torpes
É a única que lhes pode
Manter a vida

Junto com outras terras
GRITAMOS
Somos senhoras, as terras
E em nós não plantarão mais
Seus frutos secos

Nos querem separadas
Juntas, bradamos
BASTA
Que o leito vermelho que flui
É a soma da dor de todas nós

O sangue que escorre
Pelos veios que formam a bacia
É a memória de todas as que nos deixaram
E deságuam na dor que todas entendemos
E não queremos contar

Unidas vamos em terremoto
Derrubar as casas-grandes
E libertar as que eles insistem em aprisionar
Essa terra é liberdade
Todos os pássaros hão de cantar

Nessa terra, em se plantando, tudo dá: A primeira grande violência brasileira.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Caminhar até a onda

Eu vou caminhar
Até onde a onda pode bater
Eu vou me perder
No tecido cósmico
Que é ser

Eu vou lentamente
Ao ponto onde a energia se dissipa
Eu vou submergir
No tecido lácteo
Da existência

Eu quero a vida
Sendo aos poucos absorvida
Quero ser preenchida
Por cada atitude minha

Eu vou fusionar
Cada parte da minha mente
Na onda, constantemente
Retornando aos tempos
Das batidas no rochedo

Não existe trabalho
Mais lindo do que o que o oceano faz
Manutenção da vida
E do que jaz

Eu sou a onda
Meu trabalho é paz

The Good Place.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Não vou encontrar deus

Sigo pela estrada, tensa, sem destino. O caminho se faz caminhando, caminhando se faz o caminho. Ando e viajo, louca de vida e perdida no nada. Se nada existe, o que me consome? Tem quem procure deus nessa vastidão imensa e escura. Nada encontrará, não há caminho para a fantasia.

Nossos desejos podem ser os mais complexos que as reações orgânicas já produziram. Ligações que não percebem a realidade, que é o fazer. Fazendo é que se existe. A existência é fazer. A inércia é a morte. A falta de desejo é o fim da vida. E a existência é a manifestação de vida. Existência é o que se faz.

A intenção não é fundamento para a existência. A intenção pressupõe finalidade. A finalidade abraça a utilidade. A existência não tem utilidade. O reino da vontade é disperso e por vezes impenetrável pela consciência. Não é possível calcular a todo tempo o que se prefere. As preferências são fluidas, ocultas e voláteis.
 
Estamos em uma máquina de sentimentos é incubada em cinética química, pressionada pelas diversas interações do ambiente. A cada interação, uma complexa cadeia de registros se impressiona e se sobrepõe. Não há utilidade no prazer. O prazer é um princípio e um fim em si mesmo. Nada completa e a nada serve o prazer.

Não dá destino, não há fim. A finitude é também uma ilusão. Ela pressupõe algum valor intrínseco em nossa existência. Narcisismo antropológico. Uma vez que o ser humano foi capaz de criar o senso de indivíduo, ficou a par de sua personalidade. Como ser social, agregou personalidades e características e criou também o senso de identidade.
 
A identidade é uma versão ideal da personalidade. Carregar múltiplas identidades é viver em conflito. A lista de identidades não é exaustiva ou mutuamente excludente. A versão ideal se constrói por repetição e propagação. As personalidades vão se associando voluntariamente, por signos sociais vinculadas, formando idéias difusas e heterogêneas.

O império da razão se desfaz nos ares. Não faço, não existo. A obsessão maximizadora é o desejo manifesto de dominação. A busca de um complemento pelo consumo. Você se entrega para a dor, para o que não lhe interessa. Utiliza a retribuição em consumo. Consomem-se bens, consomem-se famílias, consomem-se relações. Consumir é utilizar. Tornar útil. Dar um fim. Como se uma decisão unicamente racional fosse.

Não há destino, em tempo que o passado é escrito sobre pedra. Não vou encontrar deus. As deidades são o cúmulo da idealização. Se posso imaginar o ser perfeito, é porque sou imperfeita. Deuses não existem. Nem minha existência vai ter permanência daqui a muitos milênios. Se minha existência acreditar em deuses, e minha existência vai se apagar na teia do espaço-tempo, nem eu nem os deuses podemos transcender.

Só eu posso carregar a idéia de deus dentro de mim. Eu só existo fazendo. Não posso fazer deus. Sentido de finalidade, de causa e consequência para a origem e o fim do mundo. É difícil nossa máquina de repetição de padrões aceitar a existência que simplesmente aconteceu. Não temos origem, e não teremos fim.

O que fazemos no meio do caminho é o significado que criamos. A existência pode ser angustiante sem sentido. Ao tempo que todo sentido é falseável. Nem o prazer é um sentido para a existência. A vontade não é um base para a existência. A existência é que é dependente da vontade. E a ação é a consolidação da vontade e da existência.

Um ensaio incompleto anti-racionalista.