domingo, 19 de abril de 2020

Óbvio

A franja de cabelo balançava em minha face conforme o vento soprava. Estava de frente para o rio, sol das duas da tarde. O vento frio se chocava com minha pele enquanto o sol tentava reaquecê-la e meu casaco fechado guardava o calor que produzia. Ele, atrás de mim, me abraçava passando as mãos em minha cintura, uma segurando a outra na altura do meu ventre. O frio e o quente eram todos a mesma sensação ao mesmo tempo. O silêncio era apenas humano, a natureza preenchia este espaço com seus sopros e cantos.

Fazia dias que não tínhamos um tempo assim, pra nós dois. Nos últimos meses, era sempre um ir e vir desmedido, automático, congelante. Todos os dias pareciam iguais, e eu ali, sendo igual. Ele ia e vinha sendo igual e nós iguais em dias iguais. De vez em quando me pegava pensando: afinal, para quê? A onde estamos indo? Por que estamos juntos? Que cansaço. Tão logo a pergunta vinha, ele voltava perguntando sobre o que iriámos jantar naquela noite. Que cansaço. Além de resolver as minhas dúvidas, tinha de resolver as dele. E nenhuma tinha resposta, não era possível pensar em tudo, não é possível responder tudo. Talvez eu só não quisesse mais mesmo, seja lá o que fosse que eu não quisesse.

Ao acordar neste sábado, só sentia uma imensa letargia. A semana foi tão pesada que é como se um caminhão tivesse passado por cima dos meus sonhos. Não podia ser mãe. Não podia gerar o futuro. Isso me martelava. Não porque fosse necessário ser mãe, blasfêmia. Só que é como se a força da criação tivesse se extinguido em mim. De repente, só podia conceber o presente. O desafio era imenso. Uma vida esperando pelo futuro, pelo próximo passo. Ir carregando o presente como se fosse uma necessidade do futuro, só que não havia mais futuro. Só havia presente.

O que poderia fazer com um presente que se repetia à espera de um futuro? Ele parecia ter ignorado. Em nada havia sido afetado. E o que era pior, havia me ignorado, não percebia o que se passava. Já era robótico há tanto tempo que eu já sabia seus horários, suas perguntas, suas piadas sem graça tentando melhorar isso, a falta de trato com qualquer coisa que não fosse o trabalho. Naquele momento, só via uma máquina de engrenagens grossas e toscas. O que eu estava fazendo ali mesmo? Como pude me deixar levar pelo destino social? Só a beira do abismo do sonho coletivo para o pesadelo para me fazer acordar.

Todo o desejo de futuro tinha de passar para desejo de presente. Agora, neste instante, não depois. Agora! Sábado! Isso mesmo, neste sábado. Só que sábado foi quando as energias se esgotaram. Estava ali, imóvel na cama. Deitada de barriga pra cima, pernas cruzadas, só conseguia olhar o teto branco e me sentir assim, em branco. Uma folha amassada sem nada escrito. Nada me completava, tudo me era indiferente. Blur. Não percebi que horas ele levantou, nem pensava no que foi fazer da sua vida robótica. Era a sua vida, não a minha. A vida dele era outra forma de futuro que eu não podia mais carregar. Afinal, como me deixei levar pela corrente coletiva de ir carregando tantas coisas sem conseguir carregar mais a mim mesma? Fui caindo aos pedaços pelo caminho, só carregando e carregando e carregando. Até que acabou o futuro.

Devo ter passado horas assim, sem conceber nada. O mundo era um vazio completo. Até que ele veio devagarinho conversar comigo. Sentou na beirada da cama enquanto eu estava na diagonal ignorando qualquer outra necessidade.

- Josi. A gente precisa conversar sobre isso. Não sei bem como começar, na verdade... nem devo ser eu a começar. Eu preciso saber, como você está?

- Ai, Paulo. Faz quatro dias. Quatro dias que nem eu sei como estou. Eu não consigo mais comer direito, minha cabeça dói. É um desespero. É como se algo dentro de mim tivesse se quebrado. E o que você fez por mim? Nesses dias que eu mais precisava de atenção, de carinho, tu seguiu tua vida. Sinceramente, achei que você nunca ia perguntar como eu estava. Estou assim, sentindo o amargor de te ter aqui do meu lado.

Paulo ficou em silêncio. Seu semblante parecia calmo e isso me irritava muito. Que homem desgraçado! Eu podia estar sangrando por dentro e ele só queria saber se eu podia acordar ele na hora certa de manhã. Depois de alguns minutos, a angústia voltou e eu comecei a chorar.

- Amor, a gente precisava deste momento. Sabia que não adiantava falar contigo antes, a explosão seria muito maior e eu não ia ter como ajudar. Queria te deixar claro que tu pode apagar completamente minhas expectativas, pensa apenas em ti. Sei, nós já falamos como ia ser legal ter uma filha, imaginamos brincando com ela várias vezes, ensinando a comer, a andar. Lembra que já tínhamos idéia até de onde colocar ela pra estudar? Como podia se virar na escola, se proteger, fazer amigos. Isso tudo pode ser muito lindo, mas é só nossa idealização. Toda a parte de não dormir direito por meses, ficar acordados esperando voltar de madrugada, sofrer pelas feridas que sofresse. Sente que era apenas uma ilusão.

Do choro, comecei a me acalmar. A respiração ofegante ia se reduzindo em pulso. Meus olhos vermelhos fitavam ele com esperança e ansiedade.

-Existem tantos futuros diferentes. Podemos ser viajantes e conhecer lugares que nem sabemos que existem. Ou ter uma vida pacata em uma casa aconchegante, quem sabe um jardim com tomates? Olha que legal. A gente pode ser tanta coisa, e eu só tenho uma grande certeza sobre isso. Eu quero ser muita coisa junto de ti! Eu sei que eu tenho sido meio ausente e poderia ficar procurando justificativas até a gente cansar desta conversa e seguir como era antes. Mas não é isso o que eu quero!

Paulo veio ao meu encontro e me abraçou. Meus braços dormentes nem conseguiram reagir a tempo. O calor da sua aproximação contrastava com os raios de sol que batiam no móvel amarelo e chegavam no teto. Não sei se era a vista embaçada, só sei que o teto não era mais branco. Como se meu corpo tivesse desperto, abracei ele com toda a força. Ergui minhas pernas e enlacei em volta dele. Não havia mais como me tirar dali. Do presente, daquele momento. Era a única coisa que eu estava sentido. Que se dane o que a gente podia vir a ser, eu quero ser agora, e agora é este abraço.

Ainda conversamos mais um pouco, com mais calma. Ouvi também como ele estava se sentindo com isso tudo. Um laço de amizade que vinha definhando voltou a ser tecido. Estávamos ali, no presente, juntos. Viemos dar uma volta de tarde. De tarde, em frente ao rio, vendo o vento nas águas, sentindo o sol na pele. Sua barba no meu pescoço tinha tantos significados, e agora mais este, a sensação do presente.

Diários metafóricos de uma quarentena postergante. As tubas me disseram que estão grávidas. "Se é de metáforas que se vive a vida, tente outra vez!". É raulzito, eu lembro de cor, só me falta aprender. 

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Somos quem fazemos de nós mesmos

Construímos a nós mesmos, no plural
Do que se faz sozinho, individual
Se propaga aos outros, no social
Se dissipa nos sonhos, ideal

Do que faço contigo, te juro
Do que erro repetido, me multo
Quero conhecer o infinito, me frustro
Vocês fingindo, lhes julgo

Sonhos que queremos ter
Somos quem, de nós, queremos ver
E fazemos

Somos quem podemos fazer
Dos sonhos que podemos ter
E viveremos

Mais uma vez os Engenheiros do Hawaii me acompanham. E só uma pitadinha de Sartre.