segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Nuvem negra

Nuvem negra põe teus cornos
Acima da manada
Com força agita os fornos
Mugem os trovões em saraivada

O temporal se arma tenso
Vento forte na minha'lma
Uma brisa jorra alva
Ao inferno tudo o que penso

Quero sentir intensamente
A vela aberta a voar
Essa vida não me prende
Tanto ar, tanto ar

Quero ser feliz agora
Já que futuro não há
Uma dor que se demora
Não é lugar de paz

Se a ti posso amar
Deixando a pele rasgar
De mim, posso cuidar
Mesmo sem estar em primeiro lugar?

Nuvem negra vai embora
Tua presença é de matar
Chove forte no meu peito
E me deixa descansar

Destruídos, verde e amarelo,
Teus representantes pregos,
Se apagam sem elo
Enquanto me sobrecarrego

A dor de um mundo inteiro
Numa nuvem, ela veio
No meu seio passegeiro
Resolveu se dissipar

O céu rosa de fim de tarde
É o raio que me resta
O mundo é grande a beça
Desejo é a chama que arde

Me abraça devagar
E vem junto comigo
Me dá um chamego com carinho
Que já é hora de zarpar

Chet Baker.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Piano, piano

Correm velozes carros
(ao fundo, um piano)
Rasgam o seio da noite
Individualmente isolam
Afligem, subtraem, ignoram

Variam constantemente a aceleração
Varrem o chão da cidade
(um piano ao fundo)
Corpo-cápsula
Coração-bomba

Fina lata de aço
Comprime meus órgãos
Dilata artérias urbanas
Da janela, o eco
(o fundo de um piano)

Pneus no que piso
Aumentam a pressão
Cortam a pele das calçadas
Que sangram de óleo e choro
(piano, piano, piano)

Sinal vermelho
Olhos piscantes
Não existe caminho triunfante
(piano forte)
Ponto morto
 
É baixar a velocidade
(piano diminuendo)
Apreciar a paisagem
Aproveitar o caminho
O destino é o fim
 
Árvores, caminho verde
Carinho, ver-te
(pianissimo)
Mente, fala e corpo
E amor

domingo, 9 de outubro de 2022

Declaração

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
(Titãs, 1987)

Eu quero amar. Numa manhã de domingo acordar do teu lado. Acordar contigo é pensar todos os dias que vale a pena estarmos juntas. Tu me ensina a sonhar. Eu aprendo a saber que não tô sozinha, e que teu cuidado vale a pena.
 
Teus braços são de luta e meu coração é teu. Que as nossas vozes juntas sejam coro, e as nossas ações sejam o caminho da mudança. Eu tenho orgulho de ti, e por isso quero que todo mundo saiba. Posso gritar na janela, na internet, na praia, pro mundo que estou contigo e te amo.
 
A gente não quer só comida e bebida. Isso é muito pouco. A gente quer diversão e arte para todes. Desejo  livre e manifesto. Cada vez menos barreiras. Felicidade por toda a parte. Bodichita para todos os seres. Te quero cada vez mais inteira, mais completa, mais capaz de vez a pessoa foda que tu és.

É sobre isso essa declaração. São tantos os âmbitos que tu me encanta. Teu beijo é um beijo político. Tua meditação é uma meditação polida. A tua arte é uma ação construtora. Teu carinho é um desejo construtor. Eu te quero cada vez mais viva, potente e amada. E estar do teu lado sempre. Te amo, cariño.

domingo, 14 de agosto de 2022

Navegar

O porto é um espaço feito de água e terra. Eu, marinheira, pelas águas a vagar, tanto mar, tanto mar. No meu navio, cada peça nova é comemorada. A renovação é sempre um avançar, é ressignificar. O passado e o presente no mesmo espaço, feito de afetividade e memória. Sou tão bem recebida no teu porto que nem dá vontade de partir. Não sou pirata ou mercante. Sou uma tripulante, o barco não é um meio, mas um fim. Todo sábado, aporto de bons ventos. Poesia e desejo. Viver e descansar. Filosofar e amar.
 
O tripulante é o mar. O mar é o tripulante. Mar calmo é viagem segura. Tripulante agitado é navio a balançar. Às vezes enjôo, às vezes me queimo do duplo sol que me ilumina. Às vezes me emociono, às vezes me somo. Teu porto é guarnição, aconchego, calor e qualidade. Meu coração ligeiro, cheio de sal, te vê pela costa, pela curva e se aproxima da tua areia. Deita e rola como se em casa estivesse. Cada concha encontrada é mais uma noite bem vivida.
 
Vem, vambora. A hora de partir é sempre saudade. Afetividade e memória. Construção e afeição. O vento leva e me afasta. Vento circular, coriólis que nos une. Se apenas o fim do mundo é triste, chorar me submerge, abraçar em ti é desafogar. Maré me embala. Maresia, teu cheiro me envolve, me devolve, me revolve. E sou feliz assim. No presente. Amar o mar é marinheirar.

Adriana Calcanhotto é uma marinheira. Eu sou mar. Maré, ah, mari...

domingo, 31 de julho de 2022

Tela Viva

A tela se compõe em tábula rasa
Uma personagem de cada vez
Em cada ato, uma casa
Que é, do nosso corpo, a tez

Me toca, com pincel e seda
Sinto o caminhar e a vontade
Tinta, veludo e cena
Todo pedaço teu, saudade

Viva! A tela e o domingo
Deitei contigo
Viajei no teu sorriso

Engole meu carinho
Que a nossa água
De copo cheio, é língua

Conversa e canta sem pressa
Meu olhar não quer te machucar
Apenas te ler à beça

Ah, Mari...
Marina Sena embalando.

domingo, 26 de junho de 2022

Violada

Sou terra fértil
Por muitos vigiada
Com a enxada me batem
Querem plantar,
Colher frutos e me abandonar

Quem lhes disse
Que lhes quero ser útil?
Meu desejo é a vida
Que é espontânea e livre
Vagando no meu ser

Ferida, marcada
Uma semente em mim
Inseminam de dor
Seu desejo me quer quieta,
Submissa e entregue

Os predadores me fizeram
Terra seca
Rachada e humilhada
Quantas outras terras
Sentem a minha dor?

Os predadores não notam
A terra em que plantam
Seus valores torpes
É a única que lhes pode
Manter a vida

Junto com outras terras
GRITAMOS
Somos senhoras, as terras
E em nós não plantarão mais
Seus frutos secos

Nos querem separadas
Juntas, bradamos
BASTA
Que o leito vermelho que flui
É a soma da dor de todas nós

O sangue que escorre
Pelos veios que formam a bacia
É a memória de todas as que nos deixaram
E deságuam na dor que todas entendemos
E não queremos contar

Unidas vamos em terremoto
Derrubar as casas-grandes
E libertar as que eles insistem em aprisionar
Essa terra é liberdade
Todos os pássaros hão de cantar

Nessa terra, em se plantando, tudo dá: A primeira grande violência brasileira.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Caminhar até a onda

Eu vou caminhar
Até onde a onda pode bater
Eu vou me perder
No tecido cósmico
Que é ser

Eu vou lentamente
Ao ponto onde a energia se dissipa
Eu vou submergir
No tecido lácteo
Da existência

Eu quero a vida
Sendo aos poucos absorvida
Quero ser preenchida
Por cada atitude minha

Eu vou fusionar
Cada parte da minha mente
Na onda, constantemente
Retornando aos tempos
Das batidas no rochedo

Não existe trabalho
Mais lindo do que o que o oceano faz
Manutenção da vida
E do que jaz

Eu sou a onda
Meu trabalho é paz

The Good Place.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Não vou encontrar deus

Sigo pela estrada, tensa, sem destino. O caminho se faz caminhando, caminhando se faz o caminho. Ando e viajo, louca de vida e perdida no nada. Se nada existe, o que me consome? Tem quem procure deus nessa vastidão imensa e escura. Nada encontrará, não há caminho para a fantasia.

Nossos desejos podem ser os mais complexos que as reações orgânicas já produziram. Ligações que não percebem a realidade, que é o fazer. Fazendo é que se existe. A existência é fazer. A inércia é a morte. A falta de desejo é o fim da vida. E a existência é a manifestação de vida. Existência é o que se faz.

A intenção não é fundamento para a existência. A intenção pressupõe finalidade. A finalidade abraça a utilidade. A existência não tem utilidade. O reino da vontade é disperso e por vezes impenetrável pela consciência. Não é possível calcular a todo tempo o que se prefere. As preferências são fluidas, ocultas e voláteis.
 
Estamos em uma máquina de sentimentos é incubada em cinética química, pressionada pelas diversas interações do ambiente. A cada interação, uma complexa cadeia de registros se impressiona e se sobrepõe. Não há utilidade no prazer. O prazer é um princípio e um fim em si mesmo. Nada completa e a nada serve o prazer.

Não dá destino, não há fim. A finitude é também uma ilusão. Ela pressupõe algum valor intrínseco em nossa existência. Narcisismo antropológico. Uma vez que o ser humano foi capaz de criar o senso de indivíduo, ficou a par de sua personalidade. Como ser social, agregou personalidades e características e criou também o senso de identidade.
 
A identidade é uma versão ideal da personalidade. Carregar múltiplas identidades é viver em conflito. A lista de identidades não é exaustiva ou mutuamente excludente. A versão ideal se constrói por repetição e propagação. As personalidades vão se associando voluntariamente, por signos sociais vinculadas, formando idéias difusas e heterogêneas.

O império da razão se desfaz nos ares. Não faço, não existo. A obsessão maximizadora é o desejo manifesto de dominação. A busca de um complemento pelo consumo. Você se entrega para a dor, para o que não lhe interessa. Utiliza a retribuição em consumo. Consomem-se bens, consomem-se famílias, consomem-se relações. Consumir é utilizar. Tornar útil. Dar um fim. Como se uma decisão unicamente racional fosse.

Não há destino, em tempo que o passado é escrito sobre pedra. Não vou encontrar deus. As deidades são o cúmulo da idealização. Se posso imaginar o ser perfeito, é porque sou imperfeita. Deuses não existem. Nem minha existência vai ter permanência daqui a muitos milênios. Se minha existência acreditar em deuses, e minha existência vai se apagar na teia do espaço-tempo, nem eu nem os deuses podemos transcender.

Só eu posso carregar a idéia de deus dentro de mim. Eu só existo fazendo. Não posso fazer deus. Sentido de finalidade, de causa e consequência para a origem e o fim do mundo. É difícil nossa máquina de repetição de padrões aceitar a existência que simplesmente aconteceu. Não temos origem, e não teremos fim.

O que fazemos no meio do caminho é o significado que criamos. A existência pode ser angustiante sem sentido. Ao tempo que todo sentido é falseável. Nem o prazer é um sentido para a existência. A vontade não é um base para a existência. A existência é que é dependente da vontade. E a ação é a consolidação da vontade e da existência.

Um ensaio incompleto anti-racionalista.

sábado, 14 de maio de 2022

Silêncio

A violência é silêncio. Toda vez que silencio, é por violência. Quem cala, consente a violência. Violência é um tapa no rosto, um cale a boca. Boca que diz que eu não sou quem eu sou.

Violência. Me calar é violência. Não importa o que eu faça, eu nunca vou poder alterar o passado. Querer diferente disso é violência. Negar meu presente por que tenho um passado é me anular. Uma pessoa sem história é uma pessoa sem vida. E eu tenho vida. MUITA vida.

Querer? Eu quero ser livre. Eu quero ter prazer. Ou seja, eu quero viver. Eu quero carinho e afeto. Não por piedade. Meramente porque eu sou alguém. Alguém que tem carinho. Alguém que pode dar carinho. Alguém que quer dar carinho.

Querer parece um não lugar. Onde eu não existo. Queria também ser objeto de desejo. Mas sou nada. Um lugar que não existe. Melhor, estou em um não-lugar. Não há espaço natural pra mim. Único jeito de estar viva é tomar conta.

Ser desejante e desejada. Numa composição plural, múltipla. Porque a violência é a pior forma de desejo. Melhorem! A violência é o lugar da negação do desejo. O não-desejo é a indiferença.

Eu não sou indiferente. Regorgito os medrosos. Eu gosto dos que tem fome. Dos que secam de desejo. Dos que ardem. Só isso é viver. O resto é existir.

Existo, resisto, vivo. Viva! A todo caminho, uma força diferente. Juntas somos mudança. E há muito a mudar.

Violência? Pensa que eu sou violenta? É porque você está no meu lugar não me deixando entrar. O que vai me parar? Apenas eu. E mais nada. O silêncio não impera mais. Eu vou falar o que quiser, quando quiser. O que for necessário, conforme a minha necessidade. Nada vai ficar como está, conservador. Tudo isso vai acabar. E as minhas irmãs mais novas não vão mais precisar passar por isso.

Violência é você tentando me negar. Não esqueça, negar é desejar. Eu não vou te negar, pois não te desejo. E é esse não-lugar que vai acabar.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Campo de guerra

Meu corpo é um campo de guerra. Explosões anti-auto-estima se amontoam pela pele. Tanques navegam pelas veias sem saber onde se encontra o inimigo. Há uma disputa tensa, com declações fortes e nenhum objetivo estratégico. É a auto-violência emulada pela violência externa. Nada resta de pé. Destruição como política de construção corporal.

Quero paz, quero encerrar essa guerra. Tantos ângulos meus que são lindos. Mas eu busco o ideal. O mundo ideal nunca vai ser o mundo real. Só o ideal pode ser perfeito, justamente por não existir. Mas eu sou no campo da existência. O ideal é a dor, e isso me atrai. Não é sadio buscar o ideal durante a existência. Não aceitar as próprias contradições. Nem saber escolher suas próprias batalhas.

A paz mundial é uma paz no meu corpo. E quem eu sou nessa história toda? A liberdade é também falta de força propulsora. É o fim da história. Eu não sei viver, me distancio da minha própria história. E isso intensfica a guerra. Afastar da história é buscar o ideal, o puro e o perfeito.

Isso porque eu não consigo encarar que eu sou. Em minhas derrotas, em minhas dores. A catástrofe é exagero do plano real, que é também uma leitura ideal da existência. Eu não consigo me encarar e fico fugindo na inércia. Ficar parada não é solução, é implosão onde a guerra impera.

Por isso, eu corro. Preciso correr. Pra longe disso tudo, e da guerra. E de mim, para poder voltar a mim.

Nunca acaba

Da floresta dos homens esquecida
Vem o berro da dor lancinante
O passo trôpego como antes
De vida, o amor já esvaida

Queria pisar com os dois pés no ar
E voar até o fim da vida
Esquecer que já fui querida
Pelos becos de amizades de bar

Estar sozinha é procurar sumir
Eu, que não sou suficiente,
Sinto na pele do choro o ardor
 
Enquanto a mente doente
Se afasta do prazer e busca a dor
Intenciono me deixar ir