sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Quartzo

Coração de cristal
Sincronamente a pulsar
Brilha com o sinal
Do piscar do teu olhar
 
A sensação de arrepio
Ofegante, delirante
Esfrega a pele, calafrio
Esquece a perna, vai adiante

Pela espinha, ondas de calor
Se propagam em vapor
Em pé, me pus

Coração que afoga a luz
Caminho desmedida, em paz
Lembrando do que você me faz

Corazón de cristal, Drexler.

domingo, 1 de novembro de 2020

Íris

Nós enxergamos o mundo com nossos próprios olhos. A luz vem do exterior, regulada pela íris, transformada em impulso elétrico pelos bastonetes e cones. E então, processada pelo cérebro no tálamo, e no córtex visual difundida, identificando as características objetivas do ambiente, dos objetos, dos movimentos. Após, é difundida ao cérebro, que passa abstrair a realidade e identificar e conectar conceitos.

A íris regula o que podemos perceber do mundo naturalmente. E o que podemos depreender do mundo depende de suas ações e reações. Veja, o mundo é uma percepção objetiva, avaliada pela nossa subjetividade, que nos permite uma grande complexidade de reações objetivas e subjetivas.

Construir o mundo, desconstruí-lo, destruí-lo. Começar, terminar, recomeçar. Conforme percebemos, interpretamos e agimos. Isto não é mecânico, pelo menos em parte. O movimento da realidade, ao abstrato e de volta ao concreto. Coletivamente e individualmente. Construímos a partir do que os outros fizeram da gente. Este inferno que podem ser os outros, caso existisse inferno.

Do romantismo, um abstrato idealista. No entanto, o mundo não se curva aos nossos caprichos. Do realismo, o poder e seu processo amoral de obtenção. O poder pode ser um fim em si mesmo, conforme nossa ignorância. De nada serve o poder, seja o de controlar pessoas, sejam os pedaços de metais e de papel universalmente aceitos, se não forem transformados na vontade, conforme sua habilidade. É preciso perceber o mundo conforme ele existe, com a precisão de um artesão experiente. E como um artesão, transformá-lo em parte, em utilidade qualitativa e quantitativa. Nossas necessidades podem parecer infinitas, como se o tempo para um humano fosse infinito.

A íris, que controla o que percebemos do mundo, e as conexões de tantos gânglios que transformam isto em abstrato. Ao controle das mãos que movimentam o mundo. Nada é fixo, nada se repete. Em pequenas iterações, com seus muitos "ses", criamos funções e objetos, que podem fazer o trabalho por nós. A vida é um constante oxidar, que nos envelhece lentamente. Em processos pré-determinados, em códigos finitos, em parte já decorados, ao aparente infinito que se aparenta na entropia humana.

O que demanda nossa atenção, nossa força, nossa energia, nos cria, nos guia, nos molda. Somos quem podemos ser, sonhos que podemos inventar. Aparentemente aleatórios, desejos incontroláveis, raivas descabidas. De cada pessoa levo um pedaço que me compõe em notas conflitantes, em um ritmo que nem sempre posso controlar. E nessa música da vida, danço cada vez mais livre. Quem sabe um dia, possa eu ensinar a voar. Com a beleza e a elegância dos movimentos certeiros e harmônicos, ressonar meu canto por todos os lugares para apenas sentir a reflexão que cada ume irá reverberar.

Do mundo natural, meço. Cálculo, concluo. É um desafio inserir a percepção qualitativa, que se descreve apenas em variáveis fictícias, positivas ou nulas. Nada lhes nega, nada lhes completa. Nossa abstração lógica ainda não é párea para a realidade que nos cerca. Mesmo a mais poderosa capacidade computacional é inútil se não lha damos modelos.

Nossa sensibilidade ao mundo tangível é o limite que nos faz sentir. A sensibilidade que aflora as emoções e enebriamos com entretenimentos sem fim. Sentir é a mais completa forma de receber o que nos é apresentado. Emociona-se é a abstração mais linda que podemos exercer. A íris sente, e por isso é tão especial. E ao sentir, nos faz ainda mais únicos, com nossas percepções únicas.

Aos signos, o essencial. Do mundo quero a arte, o amor, as sensações que só um cheiroso bolo no forno pode oferecer. Em troca, lhe ofereço potência, melhorias, estrutura. O que eu quero é mais do que liberdade. É dignidade, companheirismo, reciprocidade. Coisas que começam na íris até minha capacidade de conceber.

A exuberante capacidade de ser.
"Duas pessoas vem em direções opostas por uma mesma estrada carregando um pão. Se ao se cruzarem, trocarem os pães, cada uma irá embora com um pão. Se ao se cruzarem, trocarem uma idéia, cada uma irá embora com duas ideias."

sábado, 3 de outubro de 2020

Entranhas

Olho pra esta lápis-lazuli
No meu peito pendurada
Há milhões de anos moldada
Por seus veios onde li

Que existimos desde as tenras eras
De quando a terra se formara
Vida coexiste em esfera rara
Existência em matérias meras

¿Estranhas?
Viemos todos do mesmo lugar
Todos os seres igualmente evoluídos

Entranhas
No receptáculo corpo, azul de mar
Habitando no mesmo espaço-tempo

Leminski e Antunes

domingo, 20 de setembro de 2020

Interactive love

I need to fall in love. Deep inside of me, there is a love without boundaries. Someone to idealize, to keep in touch, to miss. Yes, I can love myself. But when you let someone access your feelings, it's a way of love. Love as interaction is a different way of nurture myself. As I feel the other, the other feel myself, and that makes me see myself. I'm on the other as the other is inside me.

I need to fall. Break into pieces. Then get up and walk again. Feel the fall is to be alive. I feel in love and the love in me is a feel. To fall in love is to fall inside of me. I need to feel in love. It's part of me, like a leg that let me walk free.

Come over, let's find love, let's create love, let us be ourselves. It's up to me, it's up to you. What you do to me, and what I do to you is what reality is. Love is the creation of a better reality. The world is what we see and what we do with it. Then, let be love, in numerous ways it can be. It's all about construction. And when the time's up, let it burn.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Espelho

Olho para o espelho e me vejo
Reflete a mim e ao mundo
Nem sempre foi assim
Hoje, já me construí muito

Olho pro espelho
Já tendo trocado de pele
Como a aurora da minha vida
Os vinte não me cabem mais

Procuro aos trinta
Renovar os sonhos
Desejar o planos
 
Volto com mais força
A jornada reinicia
O mundo vai girar

sábado, 22 de agosto de 2020

Futuro em chamas

O futuro me chama
Me componho
Cada nota é uma mensagem
Que reverbera no meu corpo

O passado é linha
Pauta onde posso escrever
Novos sonhos e planos
Com sabores de vinha fermentada

Futuro em chamas
Me recomponho
Cada membro é lenha
Que crepita no meu fogo

O passado é pinha
Múltiplos frutos do mesmo ser
Reescrever é tomar nota
Dos detalhes desapercebidos

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Tudo é diferente no presente

 

Olho pro passado e vejo tanta dor e aprendizado. Hoje sinto tanta potência com capacidade de existência. Desde o nascimento, marca de início da vida, vou chegando a trinta voltas ao sol. Nosso ritmo é natural, num tempo fixo para nossas capacidades de percepção.

 

Tanto acumulei em mim, em vários campos do conhecimento. Se penso e existo, tenho tantas existências. E vou as aproximando cada vez mais no mesmo ser. Não precisam ser a mesma coisa, mas talvez ser na mesma pessoa, das diversas personas que me compõe. Como ser multidisciplinar nesse mundo cheio de caixinhas?

 

Posso ser radicalmente progressista, mas sem o senso de destruição? A desconstrução só serve para construções novas que devem ser destruídas novamente após isso. A arte descreve toda essa imaterialidade que a língua não consegue expressar. Preciso de origem pra saber quem eu sou, ou sou conforme me fizeram e me fiz?

 

Apesar de tudo, amo como a despretensão é capaz de gestar coisas tão complexas que podem de fato aperceber o futuro. A vontade é o valor que carrega meus sentidos e conflita com a razão frequentemente. E sou este espaço onde todas as forças disputam um lugar para viver.

 

Vivo. ¡Viva! E o passado é algo que não me cabe mais, em que não sou mais, já fui. Estou aqui precisando de roupas novas, de idéias para frente, de sentidos construtores de um novo futuro. O velho futuro fica no passado. O futuro do pretérito é algo que não me cabe mais.

 

Vou ser mais, onde posso ser mais, onde quero ser mais. E só eu posso me parar. Dos 30 aos 40, em 10 anos. O futuro é onde posso estar.


Obrigada, Belchior. "O passado é uma roupa que não nos serve mais"

"Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais"

O álcool que permite que as idéias desconexas sejam um mesmo espaço compõe este poema e essas reflexões.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Pouco

Sou tão pouco
Não existe perfeição
Sou tão pouco
Só existe ilusão

Sou tão pouco e tão incompleta
Que mal figuro o pouco que sou
Sou e estou em pouco
Em poucos lugares e poucos tempos
Poucos corações e poucas mentes

Não existe perfeccionismo
O pouco que existe é débil
O nome também é pouco
A identidade é ruim
A personalidade é vazia

O pouco que existe é insegurança
A identidade é tão pouco
Os documentos são provisórios
A percepção é passageira

Pelo menos,
Pouco não é nada

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Chagas

Nas feridas abertas, escorre sangue escuro
Espera as plaquetas taparem o dano
Para voltar lá e mexer nela
O estrago foi te ter tão perto

Os pontos, intervenção externa para fechá-la
Não interrompem a dor de ter sido aberta
Você faz questão de mostrar que ter feito isso não lhe incomoda
Eu faço questão de não me aproximar de novo

Quando sair da minha gaiola
Quero voar pra bem longe
Deixar sarar e cair casquinha

Me deixar ser dividida em três partes
Antes, durante e depois de você
Então, você poderá ver que já era tarde

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Ponto-e-vírgula

Pulsar a solidão é um caminho de construção. Como me ver sem ver o outro? Posso me comparar comigo no espelho? Assim como um radar, jogo pulsos para ver se encontro algo. Aguardo o pulso voltar. E assim me transmito em ondas sem que ninguém perceba. Pulsar é jogar pra fora e se retrair. É tentar desaparecer deixando rastros. E voltar a ser um ponto, sem forma, vaga, solta e inexpressiva e fingir a vida. Pulsar é ver o desejo e rir dele. É tentar ver algo onde não há. O vazio é o que me acompanha. E construo o vazio em tantas formas, em tantas fôrmas imaginárias tão pequenas que só cabe ali uma coisa: o vazio. Percebo que a dualidade só existe se vejo outro. E me formo como base una apenas quando vejo o outro. Quando há outro, sou uma intersecção em Venn de dois círculos. Mas não sou o círculo ou sua união, sou apenas o vazio em sua volta. Sou o medo e a decepção. E onde devia existir interdepedência, só há vacuidade. Não existe não-dualidade porque não tem dualidade. Não posso ser nem a afirmação nem a negação do outro. Nesse momento, apenas eu e o outro, no mesmo ponto, sendo nada.

Pulso, punço, convulso. No caminhar das minhas veias, vazio. O vazio que percorre meu coração, meus pulmões, volta ao coração, meus rins, intestino e todas as tripas que me acompanham. Sou esse esqueleto de ossos porosos, onde tem mais vazio do que cálcio, que não é eu. Eu não sou meu carbono, meu cálcio, meu ferro, e o resto da tabela periódica impregnados em volta de mim. Não sou uma alma, uma essência, uma eternidade. Nem sou o espaço que ocupo, nem o ar que inspiro e expiro. Sou um pulso no vazio. Punço minhas veias transparentes de inexistência, e encontro nada. No coração, que pulsa erraticamente à procura de algo para bombear, só existe o vazio nutritivo. E ao se desperar no pulso que dura mais de 12 segundos, convulsiono.

Construo a pesquisa do que há fora de mim. Necessito de valores para entender o mundo que pensa existir. O mundo pensa e logo existe. Em sequência ao pulso de pensamento, a mente finge que é dor, a dor que deveras sente. E o pulso ainda pulsa. O mundo não é acessível aos sentido que se espalham pelos meus sentidos e retornam distorcidos pela possível existência de outro. O mundo só é qualitativo quando é quantitativo. E tento medir tudo isso que mandei pra fora e recebi. Sinto que penso, logo finjo e desmonto. Aqui não tem mais nada pra ver. Afirmar a existência e ter medo de perdê-la. De repente, a humanidade está à beira do precipício e treme de medo. O que há para temer em algo inerte? Por que o desespero da morte emerge? Ela só se torna eminente porque o perigo não é o abismo. O perigo é a humanidade em si, olhando como narciso pra si mesma ao fundo do poço e se apaixonando. O perigo de enamorar-se de si mesmo é a decepção. As flores estão por todos os lados e a existência não é um pedaço de papel afirmando que você nasceu. E nasceu categorizado, delineado, carimbado, desfigurado. Quando a gente nasce, ganha um nome, não uma foto. E quem a gente constrói no caminho é o pulso de solidão que acompanha cada um de nós. A dualidade começa a se formar quando notamos nós mesmos construindo a nós mesmos. E na dualidade em que vejo outro em mim mesma, o vazio perde a forma que descrevi tão precisamente.

A gente nasce num pedaço de papel e tem de morrer num pedaço de papel. Somos a sequência que acompanha dois papéis informando ao mundo a nossa própria existência. Porque existir não é meramente conhecer o vazio, o espaço, a forma. A mente tenta pulsar, e ao pulsar finge a existência que ela mesma acredita. A mente tem fé. Não percebe a poeira que é no universo. Verso que se compõe pela forma, pela força, pela vida. A morte é apenas a exatidão do que sempre fomos. À vida, somos simplesmente jogados. A vida é a pulsão que me carrega, enquanto eu faço de tudo pra ver os outros pra ver se entendo a mim mesma. Sou por comparação e sem comparação, não sou. Sou o falseamento, e logo sou o vazio. A existência é um prato que se come frio.

Tento me desconstruir e construir de novo. Derrubo tudo e as telhas que me cobrem e as paredes de tijolos que lhe sustentam não me servem mais. Construo caminhos pra me percorrer, quase como uma gincana. Uma diversão perigosa, à espreita do minotauro. Explodo a mim mesma em mil pontos e mil pontos se unem sem dimensão. Construo-me à minha imagem e semelhança. Insatisfeita, assemelho-me ao meu contrário e meu contrário é vazio. Assim, sou em parte vazia, em parte eu, procurando um mundo para construir, destruir, desconstruir, reformar, revoltar, revisar. Como um ponto, finjo uma revolução e tudo à minha volta gira. Sou a minha própria referência. O centro do meu próprio pulsar.

Nesse espaço, o tempo deforma minha existência e recebo todos os pulsos fingindo vida, só que já não são mais meus. Interagiram. E sendo meus e interagindo, passo a ser parte dos outros. O pulso ainda pulsa. Fingem que me vêem e me escondo. Será que jogam pulsos também? Construo minha própria solidão. O caminho é composto, construído, tergiversado. Tanta coisa que se estraga ao mesmo tempo, no mesmo espaço, meus pulsos à minha volta griiitam para serem resgatados. Há flores por todos os lados. Ao redor do precipício, tudo é beira. E a humanidade treme embasbacada. Todas as frases tem ponto final, como a vida. O ponto que sou. Tudo mede o que tudo sente. E sente muito por isso ter acontecido. Sou meu próprio negativo e sinto. Sinto duvidando o tempo todo. Preciso pulsar, preciso refletir, preciso sentar e ouvir. É preciso navegar, não é preciso viver. Imagine viver de pulsar?

Pulso. Doze segundos de escuridão. Talvez tenha algo lá, mas não importa. Meu destino é pulsar. Meu sucesso é justamente pulsar porque ninguém além de mim precisa isso. O espaço vazio do oceano, mira o navegante que finge que é preciso. Errou a rota mais uma vez e nem sabe onde foi parar. Poderia ser um ponto final, mas oriento. Ele é seu próprio ponto. Orientando, finjo mais existência e pulso mais. Não porque alguém precise do pulso, nem eu mesma preciso do pulso. O pulso precisa de si mesmo, pra ir e voltar, como sua própria partícula. É um radar autômato. Um radar comunicativo. Um eu que busca captar as mesmas frequências. Quem poderia ser mais interessante que o pulso se não sua própria reflexão. É seu negativo sendo a si mesmo. O fenômeno físico que descreve quem sou como ponto, em construção.

Nada continua conforme o pulso cansa. Mas o pulso ainda pulsa. Ritmo é apenas a distorção do tempo. Reflexão é distorção do espaço. E distorcida fico eu, com meu próprio pulso. O pulso me mostra minha existência. Sou o caminho que obriga ele a percorrer e voltar quando encontra nada. O pulso vem e volta pro nada. Sou um ponto e encerro com ponto final o fim. O fim que tem certificado de fim, se não, não é oficial. Esse é o pulso que os outros esperam do meu fim. Um fim categorizado, descritivo, filiado, carimbado. É impossível sermos felizes para sempre. Somos um ponto que volta a ser ponto no vazio que é um ponto, esse é nosso único sempre. Um ponto à beira do precipício, tremendo, como quem tem febre e espirra. E tosse como que pulsando aos outros o seu ponto final. O precipício é o outro.

Me isolo pra pulsar pro nada, à beira do precipício. Construo o precipício como construi a mim. Uma obra prima, nada se assemelha a mim, se não eu. E só eu posso decidir justamente o ponto final do precipício. Pulso para o abismo e nada enxergo. Ufa, nada pode me atrair até lá. Pulso para mim mesma e balanço tudo em volta da beira. Eu sou o precipício. A boca que se alimenta dos seus pulsos. Quem come é quem penetra ou quem é mastigado? O precipício sou eu. Eu sou a beira e o meio. Penetra-me e te devoro. Sou o nada de onde se veio e pra onde se volta. O nada é tudo o que se tem. Sou o nada e nada me completa. Sou o abismo em cada olho, em cada voz, em cada nudez. A alma é a janela dos olhos, uma alma que não existe. Você não é um corpo e tem uma essência. Você é essa essência que não existe, num corpo que se liquefaz, mastigado, digerido. Você pula em direção ao precipício para encontrar a si. Tenta sair do outro lado do precipício e sai como que envolto de uma película. Passa a pensar que é a película, e, pensando enganado, deixa de existir. Só o que é verdadeiro pode existir. E o que é verdadeiro pode ser falseado. E para ser falseado precisa de observação. E para ser observado, precisa do outro. E para a existência do outro, precisa de si. E precisa que o outro perceba a si. O outro percebe a si quando olha em minha direção e me constrói, enquanto eu construo o outro. A interdependência é a única forma de existência. A individualidade é uma ilusão. Tente existir no vazio e vai ver seu pulsar colapsar.

O ponto final se aproxima a cada ponto digitado. É digitado com meus dígitos, que fingem a existência em outra coisa que finjo para minha existência. O ponto final sou eu e o precipício no mesmo lugar. Enquanto isso, sou ponto-e-vírgula;

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Roxo

Pro céu, sou fruta mordida
A casca fina, rugosa
Sabor doce, sou cítrica
De cor escura, brilhosa

Do pé, você me colheu
Escorreguei, ia ao chão
De pé, me arremeteu
Recolhida, fui ao teu coração

Era eu, pequenina nas tuas mãos
Lágrimas-brasa, desejo, medo
Os pensamentos que me dizem não

Amar quem não pode ser desejada
Na confusão dos teus sentimentos
Sou fruto proibido, renegada

Inspirada na Alex, da Guilhermina Velicastelo. "Parece amora, parece amor", Karina Buhr. Cazuza sabia a dificuldade de ter um amor tranquilo. 8, 7, 10.

domingo, 19 de abril de 2020

Óbvio

A franja de cabelo balançava em minha face conforme o vento soprava. Estava de frente para o rio, sol das duas da tarde. O vento frio se chocava com minha pele enquanto o sol tentava reaquecê-la e meu casaco fechado guardava o calor que produzia. Ele, atrás de mim, me abraçava passando as mãos em minha cintura, uma segurando a outra na altura do meu ventre. O frio e o quente eram todos a mesma sensação ao mesmo tempo. O silêncio era apenas humano, a natureza preenchia este espaço com seus sopros e cantos.

Fazia dias que não tínhamos um tempo assim, pra nós dois. Nos últimos meses, era sempre um ir e vir desmedido, automático, congelante. Todos os dias pareciam iguais, e eu ali, sendo igual. Ele ia e vinha sendo igual e nós iguais em dias iguais. De vez em quando me pegava pensando: afinal, para quê? A onde estamos indo? Por que estamos juntos? Que cansaço. Tão logo a pergunta vinha, ele voltava perguntando sobre o que iriámos jantar naquela noite. Que cansaço. Além de resolver as minhas dúvidas, tinha de resolver as dele. E nenhuma tinha resposta, não era possível pensar em tudo, não é possível responder tudo. Talvez eu só não quisesse mais mesmo, seja lá o que fosse que eu não quisesse.

Ao acordar neste sábado, só sentia uma imensa letargia. A semana foi tão pesada que é como se um caminhão tivesse passado por cima dos meus sonhos. Não podia ser mãe. Não podia gerar o futuro. Isso me martelava. Não porque fosse necessário ser mãe, blasfêmia. Só que é como se a força da criação tivesse se extinguido em mim. De repente, só podia conceber o presente. O desafio era imenso. Uma vida esperando pelo futuro, pelo próximo passo. Ir carregando o presente como se fosse uma necessidade do futuro, só que não havia mais futuro. Só havia presente.

O que poderia fazer com um presente que se repetia à espera de um futuro? Ele parecia ter ignorado. Em nada havia sido afetado. E o que era pior, havia me ignorado, não percebia o que se passava. Já era robótico há tanto tempo que eu já sabia seus horários, suas perguntas, suas piadas sem graça tentando melhorar isso, a falta de trato com qualquer coisa que não fosse o trabalho. Naquele momento, só via uma máquina de engrenagens grossas e toscas. O que eu estava fazendo ali mesmo? Como pude me deixar levar pelo destino social? Só a beira do abismo do sonho coletivo para o pesadelo para me fazer acordar.

Todo o desejo de futuro tinha de passar para desejo de presente. Agora, neste instante, não depois. Agora! Sábado! Isso mesmo, neste sábado. Só que sábado foi quando as energias se esgotaram. Estava ali, imóvel na cama. Deitada de barriga pra cima, pernas cruzadas, só conseguia olhar o teto branco e me sentir assim, em branco. Uma folha amassada sem nada escrito. Nada me completava, tudo me era indiferente. Blur. Não percebi que horas ele levantou, nem pensava no que foi fazer da sua vida robótica. Era a sua vida, não a minha. A vida dele era outra forma de futuro que eu não podia mais carregar. Afinal, como me deixei levar pela corrente coletiva de ir carregando tantas coisas sem conseguir carregar mais a mim mesma? Fui caindo aos pedaços pelo caminho, só carregando e carregando e carregando. Até que acabou o futuro.

Devo ter passado horas assim, sem conceber nada. O mundo era um vazio completo. Até que ele veio devagarinho conversar comigo. Sentou na beirada da cama enquanto eu estava na diagonal ignorando qualquer outra necessidade.

- Josi. A gente precisa conversar sobre isso. Não sei bem como começar, na verdade... nem devo ser eu a começar. Eu preciso saber, como você está?

- Ai, Paulo. Faz quatro dias. Quatro dias que nem eu sei como estou. Eu não consigo mais comer direito, minha cabeça dói. É um desespero. É como se algo dentro de mim tivesse se quebrado. E o que você fez por mim? Nesses dias que eu mais precisava de atenção, de carinho, tu seguiu tua vida. Sinceramente, achei que você nunca ia perguntar como eu estava. Estou assim, sentindo o amargor de te ter aqui do meu lado.

Paulo ficou em silêncio. Seu semblante parecia calmo e isso me irritava muito. Que homem desgraçado! Eu podia estar sangrando por dentro e ele só queria saber se eu podia acordar ele na hora certa de manhã. Depois de alguns minutos, a angústia voltou e eu comecei a chorar.

- Amor, a gente precisava deste momento. Sabia que não adiantava falar contigo antes, a explosão seria muito maior e eu não ia ter como ajudar. Queria te deixar claro que tu pode apagar completamente minhas expectativas, pensa apenas em ti. Sei, nós já falamos como ia ser legal ter uma filha, imaginamos brincando com ela várias vezes, ensinando a comer, a andar. Lembra que já tínhamos idéia até de onde colocar ela pra estudar? Como podia se virar na escola, se proteger, fazer amigos. Isso tudo pode ser muito lindo, mas é só nossa idealização. Toda a parte de não dormir direito por meses, ficar acordados esperando voltar de madrugada, sofrer pelas feridas que sofresse. Sente que era apenas uma ilusão.

Do choro, comecei a me acalmar. A respiração ofegante ia se reduzindo em pulso. Meus olhos vermelhos fitavam ele com esperança e ansiedade.

-Existem tantos futuros diferentes. Podemos ser viajantes e conhecer lugares que nem sabemos que existem. Ou ter uma vida pacata em uma casa aconchegante, quem sabe um jardim com tomates? Olha que legal. A gente pode ser tanta coisa, e eu só tenho uma grande certeza sobre isso. Eu quero ser muita coisa junto de ti! Eu sei que eu tenho sido meio ausente e poderia ficar procurando justificativas até a gente cansar desta conversa e seguir como era antes. Mas não é isso o que eu quero!

Paulo veio ao meu encontro e me abraçou. Meus braços dormentes nem conseguiram reagir a tempo. O calor da sua aproximação contrastava com os raios de sol que batiam no móvel amarelo e chegavam no teto. Não sei se era a vista embaçada, só sei que o teto não era mais branco. Como se meu corpo tivesse desperto, abracei ele com toda a força. Ergui minhas pernas e enlacei em volta dele. Não havia mais como me tirar dali. Do presente, daquele momento. Era a única coisa que eu estava sentido. Que se dane o que a gente podia vir a ser, eu quero ser agora, e agora é este abraço.

Ainda conversamos mais um pouco, com mais calma. Ouvi também como ele estava se sentindo com isso tudo. Um laço de amizade que vinha definhando voltou a ser tecido. Estávamos ali, no presente, juntos. Viemos dar uma volta de tarde. De tarde, em frente ao rio, vendo o vento nas águas, sentindo o sol na pele. Sua barba no meu pescoço tinha tantos significados, e agora mais este, a sensação do presente.

Diários metafóricos de uma quarentena postergante. As tubas me disseram que estão grávidas. "Se é de metáforas que se vive a vida, tente outra vez!". É raulzito, eu lembro de cor, só me falta aprender. 

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Somos quem fazemos de nós mesmos

Construímos a nós mesmos, no plural
Do que se faz sozinho, individual
Se propaga aos outros, no social
Se dissipa nos sonhos, ideal

Do que faço contigo, te juro
Do que erro repetido, me multo
Quero conhecer o infinito, me frustro
Vocês fingindo, lhes julgo

Sonhos que queremos ter
Somos quem, de nós, queremos ver
E fazemos

Somos quem podemos fazer
Dos sonhos que podemos ter
E viveremos

Mais uma vez os Engenheiros do Hawaii me acompanham. E só uma pitadinha de Sartre.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Só mais um sábado

Era só mais um sábado, sol entre nuvens, vento fraco, poucos ônibus na rua. Era mais um sábado, um dia que se repete a cada sete dias, e eu, junto com ele, me repetia a cada sete dias. Acordar às oito e meia da manhã e ficar me enrolando; nove horas com um café passado; dez horas e a leitura do jornal - isso não se repete da mesma forma, ora papel, ora tela; um pouco de redes sociais até cansar; onze e meia começa o preparo das refeições do fim de semana. Solidão, mais um dia que se repete.

Começo a almoçar e sinto que o arroz ficou muito salgado. Gelo mais água, tomo um suco de limão muito ácido. A garganta ferve, nenhum áudio sai. O silêncio é rei, mais um dia se repete. Existe um pouco de aflição na calma. O nada a fazer é a falta de realizar o querer. O desejo e a vontade, imersas no tudo que me rodeia. Livros que ainda não li, indicações musicais esperando na playlist. Esse é o querer do meu eu ideal, só que eu continuo aqui, querendo outra coisa.

Resolvo descer e dar uma volta no quarteirão. A temperatura amena como a minha vida, o balanço das folhas douradas das árvores no chão enquanto se esfarelam nos ciclos da vida. Um cachorro começa a latir. Uma mariposa levanta da parede e se despede num balançar de asas. Meus passos são curtos e lentos. Todas as vias são caminhos suficientes para quem não sabe para onde ir.

Um vizinho que só conheço de rosto está regando a grama do jardim. Nos cumprimentamos, sorrisos abertos para aqueles a quem não conhecemos, mas reconhecemos. Se o sorriso é espaço público, o olhar é espaço privado. Ninguém desvia a boca, legível até para os menos treinados. No entanto, com frequência se desvia o olhar.

O arrepio, a vontade, a tarde ardia. Era uma espera. Algumas coisas são questão de tempo. O silêncio é o espaço da fala. A solidão é o campo da estima. Eu só queria mudar, mais um dia que se repete. Meu corpo é a parca expressão de mim. Sou muito muito mais do que meus ossos. O que penso, o que escrevo, o que faço, com quem me relaciono, quem influencio. Se uma parte da minha carne já não está em mim, outra por ali já preenche. O vazio e as bordas são muito mais adequadas do que formas pontiagudas. Essa sou eu, em solidão. As pessoas que eu sinto e como me sinto nelas são situações únicas, quando são.

A solidão não é um espaço nulo, nem um colapso. É só a falta de conexão que perdura em cada interação. Não é falta de fogo, são apenas convenções sociais. Cada corpo é coagido a ocupar apenas certas posições, mas eu não aceito isso. A solidão não é uma escolha, mas um acontecimento social. Os afetos vêm de laços sanguíneos, boas amizades, alguns conhecidos, e só.

Um sábado se repete enquanto eu me repito. O sábado se repete porque a sociedade se repete. Somos pequenas alterações das gerações anteriores, e isso já faz muito tempo. No portão, a chave é inserida e destrava a entrada. Sento no sofá e vejo o tempo passar com algumas músicas na minha cabeça. Hoje a janta vai ser com vinho - a água gelada vai ficar para amanhã cedo -, beringelas à milanesa fritas sem óleo, arroz. Assistir alguma série para conhecer algumas histórias falsas novas, acompanhada de algumas azeitonas. Logo, logo, não será mais sábado.

Kim Ki-young e Pitty me acompanhando nos escritos de hoje.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Stelle di mezzanotte

Há mais de 5 anos ele surgia
Um novo astro brilhava radiante
Sua luz iluminava meu coração
Sua proximidade era eletrizante

Por muito tempo estive com ele
Este astro me conduzia pela via láctea
Éramos um binário girando enternecido
Navegando pelas teias do espaço-tempo

Por muito tempo ele esteve comigo
Cuidando da cadência com seu pulsar
Da carência com seu cuidar
Da vivência com seu amar

Aos poucos seu núcleo foi mudando
De oxigênio que produzia
Agora era pesado ferro
Que desgastava nossa convivência

De repente, passei a ser simples pessoa na janela
E este astro, só mais uma estrela no céu
No passado e no espaço se distanciava
A mais de 5 anos-luz de mim

É meia-noite
Acendo a lâmpada
Não há nada mais para ver lá
Começa então um novo dia

Um pouco de Miles Davis para embalar um término