terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Devenir fou

As ajuntações se repetem nesse período. Os sonhos se despedem, meus olhos se abrem e percebo que passa das seis da tarde. O celular vibra e chama minha atenção para as inúmeras mensagens pedindo pra confirmar o rolê de hoje. O sol se põe, enquanto eu me levanto. ¡Nossa, preciso escovar os dentes pra tirar esse gosto de vômito da boca! Vou despertando. A preguiça e a lentidão me acompanham nesse almoço às sete da noite. Coloco minha calça rasgada-suja e uma camiseta com uma frase niilista que expressa minha decepção com a humanidade que produz a sexta grande extinção em massa no holoceno. O lápis de olho se mistura com as olheiras e o batom preto mascara meu sorriso. Pego minha vodka e saio, não preciso de mais nada pra fazer bobagem. Cética, só posso acreditar nos sentidos. Entorpecê-los é tentar buscar prazer pra essa mente amargurada e pessimista. Assim começa mais um dia nesse planeta de idiotas.

A lua e os celulares iluminam a via em que eu e meus amigos marcamos de nos encontrar. O som do bumbo da bateria se propaga pelo beco enquanto meus amigos vão chegando. Logo, o ritual de cumprimentos, piadas idiotas e goles espalhafatosos se sucede. As drogas trocam de mãos enquanto nos preparamos para entrar. Todos queremos devenir fous e se distrair. Decidimos entrar e passo a sentir as guitarras se misturarem entre acordes e solos. A vocalista desabafa e me encanta, alternando harmônicos tons vocais e a cadência fônica do rap. O baixo dá o compasso e todos se balançam em conjunto. Sou parte disso e muito mais que eu não quero lembrar. Onde estou é o que sou agora. Começo a dançar para espantar os fantasmas que me acompanham e a energia vai se descarregando rumo à terra. Dois amigos começam a se beijar. Me excito, ¡preciso encontrar alguém para expulsar esse abraço gelado e esquentar esse corpo!

A música deixa de fazer sentido e canso. Chamo um amigo e uma amiga para o fumódromo. Só lá é possível sentar ao ar fresco e ainda sentir o cheiro da festa. Estou jogando conversa fora. Ela surge, passa agindo como dona de tudo, até fermarsi e apoia confortavelmente as costas e a sola do pé na parede. Da bolsa apoiada na perna dobrada em v, puxa um cigarro, coloca-o na boca e observa atentamente todo o ambiente. Para olhando pra mim e acende o cigarro. Ela estava ao fundo, às costas do meu amigo, e a conversa que eu estava tendo com ele como que desaparece e perco totalmente o foco. Meus olhos desviam sem acreditar no que se passa. Não esperava por isso, afinal nunca espero nada. Mas está acontecendo. Um silêncio assoluto me assola. A timidez e a auto-estima se confundem e finjo não estar acontecendo nada. Paralisada, onde mais posso estar além de dentro de mim mesma?

A música externa anima meus amigos, que me tiram do transe e me puxam de novo para a pista. A batida está mais animada e meu amigo se entrega totalmente às vibrações melódicas e dissonantes. Eu e minha amiga resolvemos segui-lo e dançamos juntas, sexys e provocativas. O quadril balança e minha mão na cintura dela diz sobre o que sou capaz. Ninguém se importa e justamente por isso nos sentimos a l'aise para continuar. De repente, ela emerge da multidão com mais duas amigas. Se aproximam até que dois grupos que nunca se viram se misturam. Agora ela está ao meu lado e minha amiga vai se afastando, motivada pelos sinais que bombardeiam o ambiente, enquanto eu prefiro só fechar os olhos e aproveitar. De um momento para outro, dançar deixa de ser apenas a busca da liberdade e passa a ter um gosto diferente. Não quero mais apenas me impressionar, quero arrasar e seduzir outres. Aos poucos ela vai se aproximando de mim, minha barriga não para a ginga e o quadril segue a rodar. A minha mão para cima como que chama por algo que eu não sei o quê. Só quero sentir algo nesse mundo sem razão.

A separação entre música externa e meu estado interno - que vinha desvanecendo com a dança - se dissolve definitivamente quando meu corpo e o dela se unem e se completam. Suddenly, meu passo e o dela são o mesmo. Troca a canção e a vocalista traz uma letra sobre desejo e tesão. Não tenho mais como resistir e me deixo ser beijada. Vou me deixando dominar pelo inconsciente e o ritmo é a gente quem compõe. Os guitarristas arranham as cordas, bem como eu as costas dela. A cantora se esgoela e ela no meu ouvido não para de gemer. Sua boca se aproxima da minha nuca e me morde como o tapping no baixo e de súbito me arrepio como os pratos da bateria. Acabam-se as barreiras, sou serva das vontades. Os sentidos só sentem, sem controle algum, e estou onde queria estar. Nossas barrigas coladas, os rostos de frente e meu olhar convidativo, minhas pernas flexionadas e entrelaçadas com as dela que se balançam ao sabor da bateria que não para.

As músicas se emendam sem fadeback e o tempo é como um fluido escorregando pelos nossos corpos. Essa interação intensa vai se mantendo, ignorando que as pessoas estão indo embora do ambiente. A proximidade das bocas, das coxas, das mãos à pele se mantém. A banda anuncia a denière danse. Aos poucos nos recompomos e nos reconectamos com o ambiente. Nada dura pra sempre, não é mesmo? Seria mais um evento furtivo numa vida sem sentido (todas são) mas decidimos trocar contato. Pista fechando, preciso pagar. Nos despedimos com um beijo que dizia voglio di più. Procuro por meus amigos, não os encontro. Nos divertimos hoje pra esquecer que depois de dormir nada lá fora vai ser melhor.

Devenier fou, merci saez. Ed Sheeran e as crônicas de jeune et con. Pitadas de Fall Out Boy e Kyo. Lembranças de Thoreau e Pearl Jam.

Eu perdi a primeira versão do conto, que tinha um enlace muito melhor e estava mais poético. E aviso, vai ter parte 2.