terça-feira, 3 de setembro de 2019

Pela porta

Abriram a porta. Eu passei sem esperar nada. Era uma porta simples que se abria de dentro de mim para o mundo. Precisava pegar o elevador e tocar a vida. O trabalho me aguardava.

Já tinha feito isso tantos dias... Nuns, chorava e saia feliz. Noutros, ria, sabendo que menti pra mim mesma o tempo todo. Hoje não, muitas verdades saíram cortando. As verdades buscam minha boca como um fluido cheio de fel e vontade, mesma sensação do intenso refluxo que me acorda de noite. Ao saírem, a mente se sente feliz ao repelir estes elementos tóxicos de que vai se alimentar inconscientemente mais vezes.

¡Saí pela porta, sim! Sem esperar por nada nem por ninguém. Na porta do elevador tinha alguém. Esperando. Buscava descer. Minha primeira sensação foi de que não descesse. Ficasse lá em cima, onde eu também estava. Devia lhe dar um motivo pra ficar. Minha cabeça pensava em vários, mas todos centrados em mim, na minha vontade. Meu desejo é que ficasse, se não ali comigo, pelo menos com meu telefone, talvez um dia ligasse pra mim, recebesse uma mensagem. Seria feliz, pelo menos no momento do contato. Seria um eterno aguardo.

Todo esse imaginário se desenvolvia enquanto o elevador chegava. Me disse boa tarde. Ou fui eu quem disse primeiro. "¡Boa tarde!" e desviei o olhar. ¿No que estaria pensando? Afinal, ¿no que eu estava pensando? Tenho laços de seda com outra pessoa. Tenho amarras de sisal feitas por mim mesma para restringir meus movimentos. Só que não as estava sentindo, só lembrei que existiam.

Mirava discretamente todos os detalhes que me emocionaram. Ela era mais alta do que eu. Um pescoço comprido exibia uma gargantilha preta enquanto os cabelos ondulados se mexiam como véus ao seu entorno. Um olhar macio centralizava o carinho da face de contorno oval. Aquele nariz podia causar arrepios quando estivesse na nuca alheia. A boca era vibrante, colorida e quieta. O cabelo escondia as orelhas que os brincos denunciavam a existência. O blusão era quase colant, comprido até a cintura, uma malha de cor próxima da que sua pele carregava, uma sensação nude, com alguns detalhes pretos. Nada era excessivo. Uma calça jeans pro dia-a-dia e um tênis simples. Era só mais um dia, com tarefas pra fazer, elevadores pra pegar.

Tudo isso enquanto entrávamos no elevador. O silêncio me agoniava, precisava dizer algo, qualquer coisa. Não havia nada a ser dito. Me convenci de que isso era suficiente. Ela estava ali, demonstrando que existia dentro de mim que não estava amarrado. Eu estava ali, apenas sentindo. Pensava como se sentisse. E o elevador descia. Nós duas ali, no elevador, descendo, com a companhia do silêncio, paredes frias de aço escovado, sem espelho. ¡Sem espelho! Porque não queriam que houvesse reflexão naquele espaço. Sem reflexão, sentia. A porta se abriu sem que ninguém pedisse. Eu saí pela porta sabendo que o instante acabara. Não queria ser inoportuna, era só mais um dia na vida, com tarefas pra fazer, elevadores pra pegar. O trabalho me aguardava.

Três minutos em uma sensação que não sentia há anos. Três minutos e tudo revirado, pra lá e pra cá, sem amarras. Os laços se mantém vivos porque me mantenho viva. Viva e sentindo e me abrindo. As escaras e rugas internas são o resultado da luta para quebrar a casca do ovo. A porta e a casca e a sensação de passar pela porta e quebrar a casca, mesmo que só um pedacinho, e ver a luz. A sensação de ter sentido, me sentido, sem amarras, por três minutos. Vou lembrar disso até furar a casca e sair. Obrigada, moça, por ter buscado o elevador ao mesmo tempo que eu.